quinta-feira, fevereiro 05, 2004

[Sem Título]
Na minha Igreja falava-se de Pedro quando deixei a distracção guiar-me os olhos para dois jarrões lá à frente. Já estão ali há anos mas subitamente ganhei consciência de que lá continuavam a decorar o espaço entre o púlpito e o órgão. Nem sempre passaram despercebidos. Aliás, quem nos visita provavelmente permite que lhe escapem segundos de atenção para reparar nas duas peças decorativas que, de muito banais, têm uma pequena curiosidade concernente à disposição: O jarro mais largo está assente de uma forma normalíssima ao lado do mais estreito, que se encontra propositadamente caído, estendido no chão com a abertura voltada para as pessoas. Quando dizia que nem sempre passaram despercebidos remontava à altura em que eram novidade: aos reparos somavam-se tentativas de equilibrar em pé o jarrão caído. Sendo uma peça normalíssima, sem defeito aparente, é completamente possível apoia-la na base como mandam “as regras”, mas assim nunca permaneceu por mais do que uns escassos minutos. “Deixem estar isso deitado! É mesmo assim”, “Fica melhor um em pé e outro não! Fica mais giro”, “Larguem isso, é para ficar no chão. É decoração”. Eu fiz parte dos que apreciaram originalmente a disposição invulgar daquelas grandes peças. Faço parte hoje dos que se esqueceram das banais peripécias que os rodearam em tempos. Mantenho, ainda assim, uma ligação muito peculiar com tão desinteressantes objectos.*
*Ás vezes é difícil escapar à própria imaginação. Às vezes é difícil não vaguear pelas formas e pelas imagens:
Falava-se de Jonas e o jarrão no chão, com a boca virada para nós, era um peixe enorme que o tragava.
Um jarro em pé, inchado, imponente, ensimesmado. Um jarro deitado, esguio e humilde, reverente. Um fariseu e um publicano oravam.
Babel era erigida ao lado de um apocalíptico cálice derrubado.
Um pequeno Golias tombava perante o enorme David.
Jesus baixava-se e lavava os pés a um discípulo.
Não sei o que continha o jarro em pé. Do outro brotava água de um poço de Samaria. Falo de barro que falava comigo. O seu teatro abstracto veio-me à memória, mas isso a ninguém interessa. Falo de barro, escrevo sobre dois meros jarrões mas não me vou tentar com analogias. Quero desmarcar-nos de comparações. Não somos como aquelas peças; não podemos ficar no chão e alegar a decoração como um bom motivo para assim permanecermos. Não podemos igualmente ser um espelho subjectivo das escrituras, ser uma leitura apagada do evangelho para os outros decifrarem.
Talvez se chegue a uma sensação de perda de tempo no final deste texto. Afinal a quem pode interessar a ladainha dos jarrões? Contudo não me arrependo de a ter escrito, assumo mesmo que é tudo o que hoje tenho para oferecer. Por muito boa intenção que possua, nunca conseguirei ser tão bom teólogo como um particular par de jarros. Escuto-os num banco mais à frente de cada vez que uma Bíblia se abre. Chamem-lhes “sarças-ardentes” da loja dos 300. Não são imagens de escultura e apenas se tornam indispensáveis no compensar da minha falta de atenção. Renego metodologias e esquemas associativos para accionar a minha Fé, mas antes que todos se calem e falem as pedras, que me digam os jarrões para falar eu.

Pedro negava Jesus pela terceira vez. Quando o galo cantou eu estava distraído a olhar para um jarrão caído ao lado de outro em pé.
Samuel Úria