sexta-feira, maio 28, 2004

Do editor
O número 21 d'Os Animais Evangélicos traz reflexões pouco espirituais. Aleluia!
- o capuz de Bush
- a concordata católica
- o cozido à portuguesa
- e a revisitação de Shaolin.
É imprimir e ler.
TOC


"Os Jovens Fariseus de Shaolin".

Depois da ceia
Não há grande virtude em arriscar comparações entre a fé e a cozinha. Mas a asneira não será suculenta se dissermos que o cristianismo é como o cozido à portuguesa - confeccionado de formas diversas consoante o local. Serve a tese gastronómica para fazer eco de artigo pertinente lido na Christianity Today, onde Chris Armstrong reflecte sobre a sobrenaturalidade de alta voltagem do cristianismo africano.
Quis a Providência assim espalhar os crentes pelo globo: os do mundo ocidental hirtos e pouco permeáveis a doutrinas que desafiem os tubos de ensaio da Revolução Francesa; os outros, gingões na sua animada compreensão a cinco dimensões da terra e céu. Provavelmente cada um tem o que merece.
Nem sempre estas diferenças são nítidas. Se há um bispo gay com que o mundo dito desenvolvido quer provar alguma coisa, lá barafustam as paróquias africanas que isso vai contra a natureza. Tirando esta pequena peritagem do acidente, não são muitas mais as ocorrências.
Onde para uns há muros a derrubar em direcção a um universalismo minimalista e gasoso justificado pelo ecumenismo, a tolerância e os bons fígados do clero progressista, para outros há incitamento à batalha espiritual contra demónios específicos e de Bilhete de Identidade nas garras. As igrejas pentecostais no ocidente permanecem enquanto sucursais curiosas e eficientes de uma mente africana numa cultura europeia. Daí talvez a sua preciosa irrazoabilidade de base: por vezes parecem brancos a querer ser pretos.
Há uma passagem na Escritura que vale a pena lembrar. O capítulo nove do Evangelho de Marcos conta que os discípulos quiseram pôr na ordem um sujeito que em nome de Jesus expulsava demónios e que, contudo, não integrava a comitiva oficial dos seguidores do Mestre. Mas Jesus respondeu: Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagre em meu nome e, logo a seguir, possa falar mal de mim. Pois quem não é contra nós é por nós. O mais interessante é que cada um ficou no seu lado a tratar dos seus próprios negócios. Lá se vai o fundamento de uma igreja oficial, aprovada pela legitimidade apostólica e parte-se o pífaro que toca a chamada para a unificação dos crentes. É Cristo que dá o exemplo.
Os cristãos têm nas Escrituras uma boa medida para um saudável relativismo cultural (termo sinistro mas para os efeitos útil): se em Portugal os baptistas não fumam, na Espanha a absolvição é rápida; se no Brasil os pentecostais não bebem, na Lusitânia faz-se um brinde; se para os protestantes um "Avé Maria" é digno de um rápido exorcismo, para os católicos o preservativo detém o exclusivo satânico. Cada um cozinhe à sua maneira. Convidemo-nos uns aos outros para experimentar o tempero e agradeçamos à mesa com uma oração. Depois, cada um siga o seu caminho para casa.
Tiago de Oliveira Cavaco

Com a Justiça concordo
Imaginemos a seguinte situação.
O Estado português assina com uma organização representativa das pessoas de pele ?branca? um acordo conferindo a esse grupo de cidadãos tratamento diferenciado relativamente aos cidadãos com outras "cores" de pele.
Os governantes responsáveis pelo documento, quando questionados sobre a equidade e eventuais aspectos discriminatórios do acordo, argumentam que não senhor, não há descriminação nenhuma, que se mantêm o espírito da Constituição, não se promovendo tratamentos diferenciados. Que apenas foi tomada em conta a profunda ligação histórica entre as pessoas "brancas" e a nação portuguesa. Ligação, aliás, que estava já presente na própria fundação do país, e que depois acompanhou, nestes quase nove séculos, todos os grandes momentos da história pátria. Ora, essa relação tão rica justifica um acordo especial entre os "brancos" e o Estado, no sentido de salvaguardar interesses legítimos de ambas as partes e permitir o normal desempenho das responsabilidades sociais. O que, convém voltar a referir, não significa qualquer tipo de descriminação. O acordo aplica-se aos cidadãos de pele "branca" mas, para todos os outros, vigora a lei geral do país.
Acrescente-se a esta argumentação o facto de o documento ter sido negociado no mais completo segredo, conhecendo-se apenas, no momento da assinatura, resumos pontuais divulgados pela organização "branca".
Não é difícil imaginar o repúdio generalizado que tal acordo suscitaria. Desde os partidos políticos até às organizações cívicas, humanitárias e religiosas, todos (ou quase) fariam ouvir a sua voz pedindo a anulação do documento, invocando discriminação com base na cor da pele.
Pois bem, na semana passada foi assinada, com argumentação e métodos similares, a Concordata entre o Estado português e a Igreja Católica Romana.
Pessoalmente, interessa-me pouco se a nova Concordata contém mais ou menos privilégios que a anterior, se repara ou agudiza injustiças, se foi remodelada por vontade das partes ou forçada pela legislação europeia. O que eu quero mesmo é que não haja Concordata. Nenhuma. Nem com católicos, nem com evangélicos, nem com protestantes, nem com muçulmanos. Exactamente da mesma forma que também rejeito leis especiais para "brancos", "pretos", ou "amarelos". Acredito que o princípio da separação entre o Estado e as igrejas tem fundamento bíblico. E que por isso, mais do que uma ideia generosa ou politicamente correcta, esta separação é um instrumento de justiça.
Pedro Leal

O capuz
Se a notícia for verdade, e de morte. Corre por aí que existem fotos de George Bush a dirigir uma reunião para planear a invasão do Iraque, durante Janeiro de 2003, com um capuz na cabeça. Um capuz, sim! Em tudo semelhante ao modelo tornado famoso, pelas fotos de abusos humanos levados a cabo na prisão de Abu Ghraib. A ser verdade, não é de admirar que os obedientes soldados do "texano", se tenham familiarizado com o dito capuz e o tenham elevado a ícone na nobre arte de violar prisioneiros de guerra. E a continuar nesta estrada para a fama o capuz é bem capaz de fazer as delícias de estilistas mais feéricos, e veremos a Linda Evangelista a passar na pasarrelle um "capuz muito John Galliano". O capuz do Bush estará para a invasão do Iraque, como o bigode do Hitler esteve para a invasão da Polónia. Adiante!
Entretanto, no seu último discurso o "texano" vem dizer que tem uma solução mágica para a vergonha da prisão de Abu Ghrail: a solução é a demolição. Achei estonteante. Fiquei siderado com tal subtileza e graciosidade de movimentos. Incrível! Nem Deus se atreveu a tanto. Quando viu que a raça humana estava a passar dos limites, Deus manda um tremendo dilúvio ... mas, salvou 8 pessoas e os animais. Bush não! Prefere a demolição, sem salvar nenhum tijolo que seja. Claro que as más línguas já dizem que há um original do capuz bem guardado. Isto é sintomático dum indígena boçal e simplório. Vejam: a preocupação não está em condenar os sacanas que mancharam o nome das democracias ocidentais. A preocupação é com a limpeza cirúrgica da lembrança. Bush, já que se diz cristão, devia saber que a consciência não se limpa apagando a memória. Por muito que ele faça "delete" no "histórico" das vergonhas visitadas pela soldadesca yankee, não conseguirá convencer ninguém da superioridade da raça americana. Mas, em matéria de limpezas de imagens os peritos eram os fariseus. Bush é caloiro nestas andanças. Os fariseus eram especialistas em limparem o exterior do prato, mantendo o interior cheio de rapina; eram eles que caiavam a fachada dos sepulcros, mas por dentro cheiravam a podre. O "texano" é um menino de coro ao pé dos fariseus. Mas um menino esquizofrénico a brincar aos cowboys. É pena!
Samuel Nunes

sexta-feira, maio 21, 2004

Do editor
Atingimos o número 20 d'Os Animais Evangélicos.
Nele:
- o Samuel Nunes invoca a Fernanda Serrano para reabilitar o humor nas igrejas evangélicas
- o Pedro Leal arrepia-se com o visionamento de decapitações
- o Samuel Úria procura desesperadamente por um pouco de sal
- eu sugiro laudos à Bíblia sobre o punk rock
- e o Paulo Ribeiro exorciza o Marcelo Rebelo de Sousa que anda por aí em tantos púlpitos.
TOC


"Os lideres evangélicos que se inspiram no modelo de Marcelo Rebelo de Sousa para explicar ao povo os malefícios ocultos das mais diversas actividades seculares. Da música às batatas fritas satânicas".

Luz frouxa
Os alimentos no cardápio da Igreja resultam, demasiadas vezes, em digestões difíceis. Não por custarem a deglutir, não por deixarem amargos de boca. Pelo contrário. É difícil a digestão das substâncias que o organismo desconhece como aproveitar, doces alimentos isentos de mastigação, hóstias costumeiras.
Mediocridade! Tem onze letras porque me dei ao trabalho de contá-las. Não é uma possessão demoníaca que se grite inflamadamente do púlpito, mas que outra coisa, senão a mediocridade, partilha a característica divina da omnipresença?
Uma colher de sais efervescentes facilita digestões mais complicadas. Já o sal da nossa Fé mantemos longe de água. Receamos, na fervência, o dispersar daquilo que a ignorância permite manter coeso. Um copo cheio de conhecimento líquido pode fazer desaparecer, a olho nu, tudo o que cegamente decidimos aceitar. Temos medo da diluição do nosso sal; sabemos que a constância é uma virtude espiritual e preferimo-nos incultos sensaborões. Mas, "se o sal for insípido"...
Desagrada-me a adjectivação do "secular" versus o "não secular", como se fizessem parte de realidades diferentes. Naturezas distintas, concordo, mas a desconformidade entre elas é tão pronunciada que escusadamente se pronunciaria. É outro desporto evangélico que submerge na mediocridade. A satisfação pela mera distinção atinge, infelizmente, o auto-declarado crente zeloso. E para quê? Preocuparmo-nos com a diferenciação do que "edifica" e "não edifica" edifica alguma coisa? Esqueço a irritação que este vício me traz para postar uma verdade: nem tudo o que diz respeito à conversa eclesiástica edifica, assim como muita coisa edificante existe fora desse contexto. A Graça de Cristo basta, mas aos que não gracejam néscia e emproadamente contra tudo o resto.
Nisto da mediocridade parece que falo de um grande black-out: a falha é geral. Contraditoriamente, determinado crente que faz tudo para trancafiar a identidade social mantendo a espiritual, satisfaz-se intelectualmente a dizer mal do governo ou do George W. Bush. Condescende com ladainhas pouco exigentes. Uma preguiça analítica assim forma socialmente este individuo, transpondo-se para o contexto eclesiástico.
A automatização nas igrejas é quase orweliana. Critica-se a vã repetição do Pai Nosso mas reescrevem-se "pais nossos" maquilhados de improvisação. O léxico é reduzido. Parece que pretendemos agradar mais um critério do que a Deus. Onde estão as dúvidas, as fraquezas, as perguntas que fazem doer e os salmos que fazem pensar? Fé não é fezada nem um processo hipnótico. Refuto a ideia onde o Espírito entra em nós para fechar os sentidos, calar o intelecto e aceitar as coisas sem pendências; defendo antes que nos capacita a reflectir. Fé não é regressão e por muito que goste de Hebreus 11:1, Fé não é uma definição.
Estou muito longe de ser negativista e considero a igreja uma bênção, mas temo por mim. Temo pelo que dou e pelo que exijo à congregação que é noiva de Cristo. Temo pela insipiência do meu sal e pela frouxidão da minha luz. Temo que a oração pelo crescimento só se refira a cabeças, a lotação.
Precisamos estar todos conscientes da mediocridade para a podermos desarraigar. Não vamos escondê-la atrás do sistema de som excepcional ou do projector multimédia que nos legitimam a mesmice "criteriosa". O espaço físico da igreja nunca serviu para elevar a substancialidade de tudo o que lá é discutido ou beatificar as normas que são humanamente proferidas. Devemos aceitar as coisas decretadas pelo Espírito e não tudo o que nos dizem os crentes. Afinal, mediocridade nem sequer tem onze letras.
Samuel Úria

[Sem título]
Será exagerado dizer que fiquei surpreendido com a notícia. Afinal de contas, trata-se basicamente da mesma razão que mantém, por exemplo, o telejornal da TVI no top das audiências televisivas. Mas a verdade é que não consegui evitar alguma indignação.
Segundo uma sondagem da Terra-Lycos, durante a semana passada a quantidade de buscas realizadas na Internet para ver a decapitação do norte-americano Nick Berg às mãos de terroristas iraquianos foi muito superior às destinadas a encontrar sites pornográficos. Recorde-se que estes sites são, usualmente, os mais visitados de toda a rede.
Já há muito que não alimento ilusões quanto à verdadeira natureza humana. E por isso não julgo que a popularidade dos autos-de-fé da Inquisição como forma de divertimento tenha tido origem na rudeza, na falta de cultura, no fanatismo religioso, ou na miséria que era comum a muitos portugueses da época. A morte como espectáculo tem uma longa tradição histórica. Lembremos apenas os circos romanos. Hoje, em pleno século XXI, pessoas com um nível de educação, de conforto, de acesso à informação, como nunca antes a Humanidade conheceu, não fogem à regra. Sob uma capa social diferente mantêm a mesma natureza que os impele à contemplação (não quero ir mais longe) da decapitação de outro ser humano. Paradoxalmente, o progresso, parte fundamental dessa nova capa social que afirma o desejo de um mundo mais digno e fraterno para todos, fornece também a tecnologia necessária para que as raízes do passado não só permaneçam, como se tornem cada vez mais acessíveis. No caso específico, a Internet, que deixa a satisfação da mórbida curiosidade apenas à distância de um clic. É caso para dizer que alimentamos com as melhores iguarias o monstro que afirmamos querer destruir.
Esta contradição, própria de um Homem imperfeito aspirando à liberdade, é um grande desafio para os cristãos de hoje.
Por um lado, pela necessidade de denúncia. De afirmação clara do erro. A "normalização" do pecado, quer pela facilidade de acesso, quer pela quantidade de oferta, faz parte de uma lógica maligna. De um percurso degrau a degrau. A pornografia, depois de constituída "normal", cede lugar ao "espectáculo" da morte. E o processo apresta-se a recomeçar. Mas "toda a gente faz" é um argumento com tão pouca consistência bíblica que não pode permitir ao cristão ficar calado.
Por outro lado, a ideia de resistência (Tiago 4:7) ganha uma nova dimensão. O comando da televisão e o teclado e o rato do computador tornam-se perigosos campos de batalha. Com ou sem uma ética específica para a Net e para a televisão, importa reconhecer que é também nestes espaços que vivemos a nossa fé. O Cristianismo nunca é virtual.
Pedro Leal

Olha que te cai o dentinho!
Um homem morre e vai para o céu. Lá é recebido pelo habitual São Pedro que lhe dá o habitual tour de boas-vindas. Logo, o recém chegado repara num velho amigo que tem agarrado à perna esquerda um exemplar da raça humana deveras feio e sujo. "O que é aquilo?" pergunta ao São Pedro, sem conseguir controlar o seu espanto diante do horror da cena. "Ah", diz São Pedro, "o seu amigo portou-se bastante mal lá na terra, e este é o seu castigo". Mais à frente o homem vê outro amigo, e agarrado a ele outra pessoa ainda mais feia, sebenta e porca. "Bem, o Manuel deve-se ter portado mesmo mal!" São Pedro assentiu. A lógica parecia que quanto mais pecaminosa a pessoa mais hedionda e suja era a criatura humana agarrada à laia de apêndice. Um pouco mais à frente o homem reconhece o Ferro Rodrigues, e agarrado a ele ... a Fernanda Serrano. "Puxa, o Ferro Rodrigues portou-se bem! Certo!" "Não, não" responde São Pedro. "É ao contrário, a Fernanda Serrano é que se portou muito, muito mal!"
Eu acho esta história deliciosa. Mais, acho este tipo de humor corrosivo um bálsamo. É uma forma dos crentes darem largas à sua irritação com certas figuras ridículas, sem as ofender. Porque afinal não podemos dizer mal do próximo, não é! Sou capaz de pensar numa ou duas pessoas das Igrejas que gostaria de pôr no lugar do Ferro, mas a hipocrisia reinante impede-me. Resta-me arredá-las para o reino do humor abstracto.
Mas será que o humor tem lugar na Igreja? Penso que sim.
1 - Há "graça" na Igreja?
Cristo nasce entre nós cheio de "graça" e verdade. Não podemos fugir ao duplo sentido na nossa língua dessa palavra graça. Vi um postal de Natal há algum tempo que achei interessante: José e Maria na manjedoura debaixo da estrela. José para Maria: "Pára de refilar. O que é que esperavas num hotel de uma estrela".
Infelizmente, falta-nos na Igreja a graça de rirmos saudavelmente, e a dimensão da Graça que restaura. Somos ágeis na condenação, e peritos em mau-humor.
2 - Há humor na Igreja?
No seu livro "The Cosmic Vision and The Christian Faith" Conrad Hyers diz que "a fé sem riso conduz ao dogmatismo e à arrogância, e o riso sem fé leva ao cinismo". Concordo. A fé cristã, longe de negar o humor, recomenda o seu uso terapêutico para ajudar a enfrentar o desespero e a falta de sentido da vida. "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!" Ora, aí está uma afirmação de humor negro sobre a realidade. Não esquecer que "vaidade" significa oco, vão, sem fundamento. Os ingleses diriam: meaningless. Haja humor para confrontar as ironias e as absurdezas da vida.
Para terminar cá vai uma para provar que Deus tem sentido de humor também. É de cair o dentinho ó vós almas beatas e seráficas!
No outro dia eu disse para Deus: "É verdade que um minuto para Ti é como mil anos?" "Sim", respondeu Deus cauteloso. "E também é verdade que para Ti um euro é como se fossem 1 milhão de euros", continuei. "Sim", confirmou Deus. "Bem", disse eu para Deus, "dás-me por favor 1 milhão de euros?" E Deus respondeu: "Espera só 1 minuto!"
Samuel Nunes

A começar nos pés
Nos meus tempos da Faculdade um jovenzito muito empertigado na sua presunção de rebeldia metia-se comigo a propósito da fé. Questionava-me maliciosamente como conseguia conjugar a audição dos Sex Pistols com a leitura das Escrituras. Lembro-me que, tentando permanecer no domínio dos códigos sociais apropriados, tentei explicar-lhe que só uma profunda ignorância sobre a Bíblia permitiria associá-la a uma colectânea de pensamentos positivos. Ou seja, quem dera ao pobre Johnny Rotten almejar à mesma implacável descrição da humanidade que o Bom Livro comunica. Os punks já exibiam os alfinetes de dama. Em comparação com o Evangelho faltava-lhes precisamente as fraldas.
Não vale a pena chorar sobre a iliteracia do povo. Nem repisar que os portugueses conseguem inaugurar novos estádios de ignorância sobre a religião. Não nos consolam as elites nem os da cultura. Parece uma espécie de maldição divina. Que teremos nós feito no passado para que Deus nos castigasse com semelhante inépcia? Pergunta para ser respondida na eternidade, creio.
Lutero meditando sobre a oração do Pai Nosso escreve: "quem pensaria que esta oração havia de respeitar e pôr em causa tanta gente?". Por isso não faz sentido o crente sentir-se orgulhoso - ele mais que ninguém está desprotegido. Nu perante Deus, lembrava Kierkegaard. A fé não é mérito, é por vezes uma incómoda sensação de auditoria, para usar termos feios mas competentes.
Não interessa afirmar as virtudes da nossa crença pela sua dificuldade. Esta pode ser uma tendência bem natural ao conservadorimo teológico. Não há contentamento ao entender os contornos da nossa condenação. Ninguém deve pregar o inferno com alegria. Permito-me um atalho. Se há perversidade na qual os evangélicos são culturalmente instruídos é uma espécie de júbilo recalcado no anúncio do tormento eterno. Não faz sentido e é tudo menos cristão.
Vale a pena lembrar os Salmos. "Lâmpada para os meus pés, luz para o meu caminho". As Escrituras começam ao nível rasteiro do tapete para terminar na ardente convicção filosófica. Nessa distância cabem as dores do mundo, o alívio dos oprimidos e as nódoas na toalha de mesa do casamento. Não conheço livro igual.
Tiago de Oliveira Cavaco

sexta-feira, maio 14, 2004

Do editor
O número 10 d'Os Animais Evangélicos vai desde artigos semi-académicos a instrumentistas de sopro. A teologia anda algures por aqui.
TOC


O Duplo Sogro - Os amores de Jacob.
Feio!
Esaú é dos personagens mais feios que a Bíblia retrata. Tanta estupidez e tanto pêlo juntos não nos criam uma imagem agradável.
Em laivos de insegurança espiritual (toda ela palerma) na minha meninice, entretinha-me não poucas vezes a tentar conjugar aquilo que a Ciência desmentira na religião. A meio das explicações disparatadas havia uma que não confesso com orgulho, pois para mim Esaú era, não o elo perdido entre humanos e macacos, mas ele próprio o ascendente de todas as figuras simiescas, peludas e estúpidas, que observava no livro de História do 7º ano. Fazia todo o sentido já que o tal não deixava de ser habitante primitivo de um Mundo jovem.
Paremos com isto. Ridicularizar-me com estas memórias não leva a lado algum (a não ser às contorções e ao apertar de estômago pela vergonha de mim mesmo) por isso volto ao ridicularizar de Esaú, um dos personagens mais feios que a Bíblia retrata. Com tanto pelo não podia ser bonito; com tão pouco tino não podia ter grande postura, era irremediavelmente feio. Até a acentuada afeição pela caça nos reporta a uma imagem de rudeza, aspereza, fragosidade.
É sabido, Esaú deixou-se embair pelo irmão Jacob e vendeu a primogenitura por um prato de lentilhas. A "primogenitura" não deixava de ser, naquele tempo, um conceito abstracto. Para todos os efeitos as nossas posses hoje também não passam de números informáticos abstractos que no Multibanco materializamos em dinheiro. A maquia da primogenitura na época de Esaú era inestimável; se houvesse uma lista da "Forbes" dessa altura seria para retratar os primogénitos descendentes de Abraão. Quanto às lentilhas, penso que teriam o mesmo valor de agora e não me vou pôr a brincar com inflações. Feio e muito burro, este Esaú.
É sabido, Jacob voltou a surripiar a Esaú mais um conceito abstracto de valor incalculável. Noutro episódio gastronómico, o matreiro Jacob vestiu-se com peles de animais para se fazer passar pelo piloso irmão (que feio deveria ser) aos olhos muito desgastados de Isaac, pai dos complicados gémeos. Com esta mascarada o mais novo retirou a Bênção que o pai prometera ao grotesco mais velho.
É sabido, o barbudo caçador jurou morte ao irmão. O segundo logro tinha sido demasiado. Sobre Jacob cairia a vingança do imbecil indecoroso. Não fosse a mãe de ambos, afecta ao mais novo, ter ouvido a inflamada jura e alertado o seu dilecto, talvez a morte tivesse mesmo assombrado aquela casa nesse dia.
É sabida muita coisa entretanto, mas de Jacob. A sua fuga , a sua inevitável regeneração e as peripécias noutro lado, bem longe. Quando se vê obrigado a retornar à terra dos pais o medo consome-o. Teme a vingança fraterna. Apressa-se a enviar presentes ao feio do Esaú para escapar a um sangrento destino que se afigurava incontornável.
O capítulo 33 de Génesis é, para mim, uma das mais comoventes passagens de toda a Bíblia. Quase me apetece transcrevê-lo para embelezar a irremediável fealdade do meu texto. Não o farei e passo a uma curta descrição: Jacob vê aproximar-se Esaú que traz consigo 400 homens. Teme a chacina e faz recuar os seus filhos e mulher na comitiva que com ele viaja; espera que sejam poupados. Ele próprio se adianta e, prostrado no chão, curva-se 7 vezes até que Esaú chega. O "feio estúpido" corre e lança-se implacavelmente ao pescoço do irmão para... o abraçar. E beijar. E chorar. Choraram ambos.
No tocante diálogo que se segue, Jacob olha para o gémeo e esta pequena expressão que lhe diz não evito transcrever: "...porquanto tenho visto o teu rosto como se tivesse visto o rosto de Deus". Esaú é dos personagens mais bonitos que a Bíblia retrata.
Samuel Úria

[Sem título]
Muitos cristãos dos primeiros séculos caminharam para a arena acusados de ateísmo. Tal situação pode parecer absurda para nós, que vivemos num contexto social influenciado pelo Cristianismo. De facto, a evocação de Deus está presente a cada passo dos ensinos de Jesus e da pregação dos Apóstolos. Mais: o próprio Cristo assumiu um estatuto divino perante os seus seguidores. Como podem então tantos homens e mulheres terem sido conduzidos ao suplício em nome de uma doutrina, o ateísmo, que visivelmente não abraçavam?
A questão não tem tanto a ver com a dúvida ou negação da existência divina, mas sobretudo com a sua pluralidade. Os primeiros cristãos negavam-se a reconhecer qualquer outro deus, incluindo o imperador. Eram radicalmente exclusivistas. E essa posição, num mundo dominado pelo politeísmo, abria todas as portas aos problemas e às incompreensões. Mas, apesar da intransigência, eles não desistiam de tentar esclarecer quem os perseguia (como, por exemplo, Atenágoras, na "Súplica pelos cristãos"). No entanto, assumindo até às últimas consequências a sua fidelidade ao Deus único, para eles importava, acima de tudo, limpar qualquer dúvida quanto à singularidade do Ser que adoravam.
Hoje, quase vinte séculos passados, o exemplo desses pioneiros continua actual. É certo que em Portugal não corremos o risco de tortura ou morte por afirmar que só há um Deus e que o único caminho para Ele se chama Jesus Cristo. Permanece, no entanto, a conotação subversiva. O discurso da tolerância e do ecumenismo, baseado na premissa de que todas as religiões possuem um pedaço da verdade divina, reage mal, como reagia o politeísmo do império, à mensagem da exclusividade. Podemos asseverar o nosso amor à liberdade de consciência e o respeito pela experiência e tradição de outros povos e culturas. De pouco vale. Os rótulos colam-se depressa aos que não vão na corrente. Antes seríamos "ateus", agora somos "fundamentalistas" e "intolerantes".
O Evangelho sempre foi incómodo. Para quem o ouve e para quem o vive e prega. Tal como aqueles cristãos perseguidos, os cristãos de hoje são convocados para a fidelidade. A mensagem é importante demais para que possa ser negociada, obliterada ou transformada em figura de estilo. Só há um Deus, e Jesus Cristo constitui o único caminho até Ele. Tudo o que ensombre esta clareza não vale a pena.
Pedro Leal

O encontro com o infernal saxofonista
Quis a Providência que eu crescesse a ouvir demasiado rock'n'roll. Saiu um rapazinho com vagas pretensões intelectuais mas com um indomável e semi-pecaminoso apetite para ser estrela musical. Parece que nem a adolescência, nem a paternidade foram tutoria eficaz para refrear o impulso carnal. E quando se encontram mais dois ou três indivíduos igualmente pouco espirituais o resultado é ter uma banda chamada Os Ninivitas.
Na mistura de cântico sacro com espírito profano o resultado é uma coisa pouco conforme os padrões tradicionais daquilo a que se convencionou chamar música evangélica. E como nem sempre escolhemos bem as companhias, lá acabaram um dia destes Os Ninivitas a tocar num evento para jovens baptistas.
Quis a Providência que eu tivesse crescido num lar em que o pecado da simpatia nunca foi devidamente combatido. Resulta que no fim da actuação daquela jornada fosse cumprimentar afavelmente um saxofonista brasileiro que tocava com precisão e profissionalismo. Posteriormente soube que aquela alma caridosa era um músico de carreira e que estava agora a cruzar a Europa para ganhar almas para Cristo. O ouvir de tão sublime missão deveria ter sido o suficiente para mim para pôr um termo àquela conversa e evitar semelhante companhia. Mas sucumbi. Aquele homem do sopro aproveitou um embalo para partilhar a sua perspectiva estética sobre a minha banda. "Interessante é o termo apropriado", disse. E com um sorriso naquela beata face afirmou que se havia divertido muito durante a nossa actuação.
Quando um músico evangélico brasileiro diz que considera algo "interessante" ele quer na verdade dizer que lhe falta substrato espiritual, devoção na forma, rezas antes de entrar em palco e uma mão a apontar para o céu quando se ouve um aplauso. Sei-o porque já gramei muitos músicos evangélicos brasileiros e porque ser um baptista português significa descobrir que alguém assinou por nós um pacto macabro de que até ao caixão vamos ter de levar com muitas instruções não-encomendadas dos nossos irmãos trans-atlânticos. Terá sido uma espécie de aposta entre Deus e o diabo? Tipo Job? "De certeza que os crentes portugueses não aguentarão firmes na fé se tiverem de aturar missionários brasileiros a vida inteira ..." arriscou Lucifer. O Senhor parece ter aceite o desafio.
Recebemos mal os crentes da ex-Vera Cruz nas nossas igrejas. Oferecemos-lhe o espaço inapropriado. Demasiado grande e de mão beijada. Fomos educados nesta colonização eclesiástica, bem sei. Muito do que somos devemos ao esforço de países como o Brasil e Estados Unidos. Mas já é altura de arranjar um emprego e sair de casa dos pais.
Temos litugias importadas, maneirismos contrabandeados, pregadores estrangeirados e orações com sotaque. Nesta ausência de auto-estima basta o encadeamento oleado de três frases movidas a jargão religioso para darmos a camisa e o púlpito ao visitante tropical. Não lhes fazemos bem a eles nem a nós.
Quis a Providência que naquele encontro com o saxofonista eu não usasse da sinceridade devida. Afinal eu creio na pedagogia das conveniências sociais. A actuação tecnicamente irrepreensível daquele instrumentista lembrava os filmes eróticos que se fazem sempre acompanhar de interlúdios de saxofone para as cenas escaldantes. Eu deveria ter partilhado essa palavra com aquele meu irmão.
Tiago de Oliveira Cavaco

"Amas-me!?"
O filme "Um Violino no Telhado" (Fidller on The Roof - seria melhor traduzido violinista no telhado), tem uma cena amorosa entre o patriarca da família e a sua esposa. Pergunta ele a certa altura à mulher: "Amas-me?" "Que pergunta parva" - diz ela - "estás com indigestão". Ele insiste: "Éramos tímidos quando casámos, não falávamos muito!", e ela desabafa: "25 anos a criar-lhe os filhos, a lavar-lhe a roupa, a fazer-lhe a comida e a limpar a casa, e agora ele pergunta-me se o amo!" "Bom, então amas-me?" - pergunta ele. "Suponho que sim!" - exclama ela. "Ainda bem!" - suspira ele.
Cristo também faz essa pergunta crucial a Pedro, em João 21: "Amas-me!?". Crucial em três áreas para Pedro, e para mim.
1 - Fisicamente, Cristo faz a pergunta à beira dum churrasco na praia. Fora também perto dum fogo em casa de Caifás que Pedro sentira o seu mundo desabar. O fogo da traição. E eu penso nos "fogos" que ateei no meu percurso de vida, e nas vezes que traí o meu Mestre!
2 - Emocionalmente, a pergunta mexia com Pedro. Pois já provara que o seu carácter tinha sombras e era volúvel. Para mais, Cristo esfregava sal na ferida ao tratá-lo por "filho de Jonas", que é como quem diz "filho de pomba" - instável, frágil e assustadiço. Como ele desejava ser "petra" de sentimentos! Firme como a rocha. E eu penso nas vezes que tenho sido "pomba", e no desejo não concretizado de ser "petra".
3 - Espiritualmente, Pedro vivia num pesadelo, povoado por galos a cantar, e galináceos a debicarem na sua cabeça ... a meio da noite acordava alagado em suor ... cometi o pecado imperdoável! Entretanto, Cristo restaura Pedro. Primeiro dá-lhe a garantia de que o perdoa, e assim, com a sua confiança de novo energizada, Pedro recebe uma missão: "Apascenta as minhas ovelhas". E há nesta frase todo o perdão que viaja da negação para a afirmação. E eu penso nos momentos em que Cristo serenamente me perdoa levando-me ao colo para que a minha atitude espiritual seja de lúcida afirmação.
Samuel Nunes


Ciência e a Afirmação da Fé
Certo dia um cientista do Reino Unido fez no seu laboratório uma experiência, uma síntese de um produto químico na qual conseguiu um rendimento de 90%. Anos mais tarde na África do Sul, este mesmo cientista seguiu exactamente a mesma técnica da primeira síntese e conseguiu um rendimento de apenas 65%. O cientista não conseguia perceber a causa deste decréscimo no rendimento da reacção, pois tinha utilizado exactamente os mesmos reagentes, o mesmo material, as mesmas condições, enfim, tudo. Na sequência deste resultado, o cientista não assumiu que as leis químicas envolvidas tinham mudado, nem que a mesma técnica tinha agora passado a produzir resultados diferentes. Antes, assumiu que embora não percebesse o quê, alguma coisa ele teria feito de diferente. Para isto, ele usou o que podemos chamar de fé.
A crença na reproductibilidade química é um acto de fé, na medida em que a ciência assume que todas as leis se mantêm constantes no espaço e no tempo e não tem bases para isso além do facto de até agora, sempre ter sido assim. Estas são as mesmas bases que eu tenho, por exemplo para acreditar na fidelidade de Deus ? até agora Deus sempre tem sido fiel.
Mais tarde, o cientista veio a descobrir que um dos reagentes tinha sido adulterado pela humidade.
Como podemos ver por este exemplo, a fé e a ciência não são inimigos figadais. A ciência tem muito de fé, e o pensamento científico por sua vez, chega a ter um papel muito importante na apologética e na abordagem cristã das escrituras. A minha formação científica foi preponderante a determinado ponto da minha conversão e entendimento do evangelho.
Contudo, a ciência tem um campo de acção definido e limitado. C. S. Lewis ilustra esta realidade pedindo-nos que imaginemos um cientista que pensa que a sua esposa pode estar a ser-lhe infiel. No seu laboratório, perante uma questão ou problema, como bom cientista que é, ele formula uma hipótese, e de seguida, cria todas as condições para experimentalmente provar que a sua hipótese se mantém sem ser contrariada por nenhuma das experiências. Se tal se verificar, ele promove a sua hipótese ao estatuto de teoria, e é essa a sua conclusão. Decerto que perante a hipótese da infidelidade da sua esposa, o cientista não iria criar todas as condições para que a sua hipótese se pudesse comprovar experimentalmente. Se o fizesse, estaria a ignorar toda uma série de considerações sobre a natureza humana que nesta situação seriam primordiais. O método científico poderia neste caso ter consequências desastrosas. Não era o método indicado para esta situação! Seria como utilizar um telefone para medir a radioactividade.
Temos de conseguir perceber qual é o domínio da ciência. Temos de conseguir perceber o que é que Deus nos diz através da sua palavra revelada que a ciência não diz.
Para ajudar na resposta a esta questão, vamos imaginar duas pessoas numa noite de verão passeando à beira-mar. Ambas se aperceberam de alguns fachos de luz no mar. Um deles era um cientista e o outro era um escuteiro marítimo. O cientista descreveu o que acontecera como a visão de um filamento de Tungsténio aquecido, fechado numa cápsula de sílica emitindo um padrão regular de flashes de radiação no comprimento de onda do visível a uma intensidade de aproximadamente 2500 lúmens , à distância de 850 metros da costa. O escuteiro descreveu o acontecido como a sinalização luminosa de um SOS para a guarda costeira que prontamente enviou socorro.
Qual deles deu a descrição mais correcta do que acontecera? ? Nenhum ! Ambos deram uma descrição correcta, mas em termos bem diferentes!
Este exemplo do cientista e teólogo Ernest Lucas ajuda-nos a perceber o género de questões a que a ciência responde. A ciência diz-nos como o sinal luminoso foi produzido, mas não nos diz porquê. Da mesma maneira, a ciência pode tentar dar sugestões acerca de como o homem foi criado, mas nunca nos dirá o porquê de o homem ter sido criado.
Existem muitas questões que ultrapassam claramente o domínio da ciência, como por exemplo as questões éticas. De onde tiramos os valores que regem a ciência ? O homem tem originado muitos desastres por não ter um sistema de valores capaz de controlar o uso da ciência. Pensemos por exemplo na bomba atómica e na sua utilização como consequência de um notável progresso científico, mas ao mesmo tempo de uma terrível inconsciência moral.
Foi por esta razão que a confiança exacerbada na capacidade humana, e no engenho científico (como garantia de um futuro risonho para a humanidade) apregoada pelo racionalismo positivista do início do século, foi destruída pela tragédia da 1ª Grande Guerra. Ficou claro que a ciência não tinha a resposta para tudo.
Contudo, não foi apenas no âmbito da ética que os ideais deste racionalismo se mostraram incompletos. A deficiência que se verificava no tocante ao encarar da dimensão espiritual e mais subjectiva do homem, a pouco e pouco se tornou notória e mais relevante. Assim, confirmando um pouco a "hegeliana" visão dialéctica da história, a tese gerou uma antítese, e depressa se aplicou o subjectivismo e o pluralismo sugeridos pelos desconstrutivistas literários à totalidade da realidade humana, preenchendo assim com uma nova dimensão o vazio deixado por muitas décadas de "ditadura racionalista".
Hoje em dia a realidade das limitações do positivismo racionalista está mais presente procurando-se agora respostas em todo o tipo de transcendentalismo.
O mundo científico está também desperto para esta realidade. Stephen Hawking, um dos mais proeminentes físicos do nosso tempo, dá também sinais desta consciência, quando no seu livro "Uma Breve História do Tempo" lança a questão: "O que é que expira fogo para as equações e faz com que exista um universo para elas descreverem?".
C.S. Lewis deixou-nos uma frase que aponta o caminho para a resposta a esta questão : "O que nunca podemos fazer é excluir a hipótese de o sobrenatural ser a única explicação possível". E é apenas isto que o cristão faz ! Assume que o homem foi criado porque Deus o quis !
A Bíblia ensina-nos que Deus criou o mundo com um propósito e ensina-nos também que é Deus quem mantém o universo a funcionar: a afirmação da Imanência de Deus .
Ao olharmos para uma flor, podemos perceber ali, Deus a suster e a manter a natureza tal como a conhecemos. Como Jesus afirmou, as próprias aves do céu são sustentadas por Deus. Como é que Deus sustenta é uma questão para a ciência resolver...
Tiago Branco

segunda-feira, maio 10, 2004

Do editor
Uma licença de paternidade atrasou o número 18 d'Os Animais Evangélicos. Mas não o impediu. Mais curto que é costume mas cá está. Três artigos e um desenho. Chega.
TOC


A zebra perdida.

A mulher grávida na sessão de igreja
Anda por aí uma gente em orações inflamadas. Clamam por uma igreja verdadeira, sem regras e castrações, cheia de pureza e sem hipocrisias. Com hálitos asseados revelam que não estamos a conseguir comunicar com o mundo. Ulceram-se com liturgias vazias, não encaixam nas pesadas agendas dominicais.
A minha esposa começou a perder líquido amniótico numa assembleia administrativa da Igreja Baptista de Moscavide. A minha filha nascia pouco mais de um dia depois daquelas penosas três horas de parlamentação congregacional. Seria muito melhor passá-las a disfrutar o sol de Domingo.
Quando ouço alguém a escolher a sua fileira no espírito da lei sei imediatamente que estou perante um adversário. Sou uma pessoa que opta sempre pela letra da lei. Não pestanejo. Conheço o meu lado das trincheiras.
São muitas as almas ofendidas pela actual ausência de espiritualidade da igreja. O evangelho não combina com instituições humanas, e por aí fora. Topo esses bonecos de peluche tosquiados à distância. Têm sempre uma amplitude cardiológica superior à minha e um banho tomado há menos tempo.
É cedo falar em educação dos meus filhos. E nada recomendável sequer. Mas espero incutir-lhes muito legalismo. Apego a regras. Desprezo por visões e utopias.
Não existem boas intenções naqueles que julgam saber aquilo que o mundo precisa. Não há bons ventos a sair de cabeças arrebatadas. Dava-me jeito, parece-me, uma reeducação para a mesquinhez. Essa será uma boa reforma para a igreja. Dar mais atenção à sua matéria-prima. À deplorável alma humana.
Acabo com fundamentalismo. Pessoas que fazem fretes são sempre melhores do que pessoas que não fazem fretes. Gente com pachorra para aquilo que não a merece é sempre gente melhor do que gente sem pachorra para aquilo que não a merece. Eu e a minha mulher demos um grande exemplo à nossa filha. Porque o parto foi muito complicado. E as dores começaram na assembleia administrativa da Igreja Baptista de Moscavide.
Tiago de Oliveira Cavaco

Ler nas espinhas
O almoço foi peixe. Qual feiticeiro de tribo africana, li nos restos do prato, por entre espinhas e azeite, a minha triste sina.
Não foi a primeira vez que encarei, infectado de alguma vergonha, a falta de decoro na louça entregada para lavar. Dentro da cozinha onde almoço com os meus colegas apresso-me várias vezes a despejar o prato no lixo antes que o opróbrio me tome. Desconfio nunca vir a ter qualquer hipótese de corrigir o desmazelo nas refeições. Por muito que me concentre no acto de comer, cortar com faca, picar com garfo, mastigar, sei lá que mais, sobre os meus pratos ficam sempre vestígios, muito arroz espalhado, migalhas de qualquer coisa, restos de peixe nas espinhas, coxas de frango mal rapadas. No sobejar feio do prato em que almocei li a minha triste sina: hoje iria escrever sobre isto nos Animais Evangélicos.
Às vezes refugio-me na etiqueta, confortando-me com a ideia de um prato limpo ser pífio sinal de sofreguidão. A estupidez humana não faz por menos: em vez de disfarçar os meus defeitos com pequenas desculpas despistantes, tenho logo que chamar atenção para eles declarando-os como virtudes. Faz-me lembrar quando, era eu criança, a minha mãe comprou um chamado "tapa-buracos" para disfarçar calças que rompi. Tenho presente esse remendo com o símbolo da Ferrari que, enquanto ostentava orgulhosamente nos joelhos, revelava gritantemente que andava de calças rotas. A ironia recuperada é por recordar-me do buraco no joelho, tão minúsculo que ninguém notaria, não fosse a absurda qualidade com que mascarei o defeito.
É impossível dar-se o primeiro passo para corrigir uma imperfeição se esta não for assumida. Gastamos muito latim a beatificar os nossos defeitos e nenhum a confessá-los. O pior é que nos enlodamos na oratória e já não conseguimos escapar à palmatória.
Devia evitar falar no plural. Se quero experimentar um exercício de humildade não devo generalizar no apontar das falhas. Eu é que deixo o prato sujo. Eu é que introduzo a conversa com um "pecado menor" nas refeições, para suavizar a confissão do mesmo desleixo noutras acções.
Sou desmazelado e, a braços com esta confissão, não acho muito correcto terminar a frase usando ponto final? O fardo acumula-se quando já há pessoas a contar com o meu laxismo, a reconhecerem-no como parte estética integrante da minha essência. Por tanto promover a incúria já tenho dificuldade em diferençar quando é que é uma postura propositada ou o tal defeito mascarado. Postura propositada? Bah, boa tentativa!
Não sei de nenhum evangélico que desconheça Josué 1:09. "Esforça-te (...) porque o teu Deus é contigo" tem leitura óbvia e teor suficiente para me ensinar uma lição. Esforçar-me-ei porque conto com a ajuda de Deus. Vou agora tentar aliviar o meu sufoco com a difamada generalização: quantos de nós é que já se atreveram a mudar a ordem ao versículo e a entendê-lo como "O teu Deus é contigo, por isso vê lá se te esforças!"? Poucos. Vamos lá limpar esse prato.
Samuel Úria

3 personagens
Por esta altura no calendário litúrgico da maior parte das Igrejas Evangélicas (sim há Igrejas Evangélicas com uma liturgia ancestral), saltam à retina três nomes que povoam os Evangelhos. Maria Madalena no sepulcro, a chorar; Tomé no quarto a duvidar e Pedro na praia a cear.
Maria Madalena traz-nos toda a dimensão da perda, mas também da mudança emocional radical que se operou nela - "Rabbonni". Tomé ensina-nos que a dúvida pode levar-nos a uma fé mais convicta - "Senhor meu e Deus meu". E Pedro ensina-nos que a restauração para o Serviço do Mestre é possível - "tu sabes que eu te amo!"
A ninguém Cristo trata com rispidez: à mulher chorosa chama pelo nome (carregado da pronúncia Aramaica) - "Maria"; ao incrédulo céptico-urbano desafia calmamente - "põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos"; e ao instável-depressivo recomenda - "apascenta as minhas ovelhas". Cristo a todos restaura. Cristo a todos encoraja.
E, como é urgente termos encorajadores. O verdadeiro encorajador é aquele que trata das pessoas primeiro, e só depois das circunstâncias. É aquele que alerta: "mão no arado, e nada de olhar para trás". É aquele que exclama: "olhos em Cristo, autor e consumador da nossa fé". Por causa da trilogia maldita é difícil ser discípulo de Cristo. (mente quem diz o contrário!) Há o pecado dentro de nós (natureza falida); há a pressão à nossa volta (cultura corrupta); e há o inimigo-luz (o pequeno deus-sombra). Ser seguidor de Cristo é nadar contra a maré e ser resgatador da sociedade. Por isso é necessário alguém exercer o ministério do encorajamento. Os Barnabés (Actos 4:36)! Sem as fraquezas de Maria, as ambiguidades de Tomé e os defeitos de carácter de Pedro, os Evangelhos seriam menos genuínos e a nossa experiência Cristã ficaria mais pobre. Eles encorajam-me...
Samuel Nunes