sexta-feira, outubro 15, 2004

Nota
Estamos em remodelações. Voltaremos de cara lavada e coração circuncidado. Em breve.

sexta-feira, julho 16, 2004

Do editor
Paramos em Julho e Agosto. Estaremos de volta depois. Ate lá.
TOC


"The Devil Made me Do it ou a concupiscência da carne".

sexta-feira, junho 25, 2004

Do editor
Não podia ser mais apropriado: um artigo único no número 25 d'Os Animais chamado "A Pausa". É isso mesmo. Paramos em Julho e Agosto. Estaremos de volta depois. Ate lá.
TOC


"The Devil Made me Do it ou a concupiscência da carne".

A Pausa
Tenho saudades do Daniel Day-Lewis. Quem? Dirão alguns mais distraídos. Daniel Day-Lewis, de "o meu pé esquerdo", "a insustentável leveza do ser" - que me fez apaixonar pela Juliette Binoche e por Praga, cidade das misteriosas pontes e das orquestras na rua - "o boxer", e "o último dos moicanos". Neste, há uma cena luminosa logo a abrir. Daniel Day-lewis corre por entre as árvores da floresta com mais dois companheiros índios, na perseguição dum alce. A adrenalina corre com a emoção da caçada, a música cresce de intensidade e a velocidade acelerada pelos efeitos especiais é contagiante. DDLewis pára. Faz pontaria. Dispara. A velocidade cai. O filme passa à câmara lenta. A música entra em travagem abrupta. O alce é abatido. Os três índios chegam perto do animal ferido de morte e prestam-lhe uma última homenagem. "Respeitamos muito a sua coragem, velocidade e força" diz o mais velho de joelhos, respeitosamente. Nenhum deles ri ou mostra sinais exteriores de vitória. Pelo contrário, até há uma lágrima furtiva que rola pela face dum dos índios.
Vejo aqui uma imagem perfeita da nossa vida espiritual. Como corremos! Como caçamos! Como atiramos a matar - geralmente outros seres humanos! E, como nos felicitamos pelas vitórias sobre os outros. E se a "vítima" for um irmão em Cristo, ainda melhor. Pagamos cervejas a toda a gente! E, ninguém me diga que não é assim porque a negação será hipocrisia grave. Mas, sobre a matança em que alegremente nos envolvemos na Igreja, podemos falar depois. É tão habitual que já não cativa leitores. (a audiência nesta coisa dos blogues é essencial!) Deixo apenas uma nota de pausa. (kit-kat, em linguagem pagã; selah, em linguagem bíblica) Uma pausa visceral. Essencial. Uma desaceleração feita num repente instantâneo. Sem aviso e sem carta registada. Uma pausa para me aquietar das corridas desenfreadas que a minha existência exige. Uma pausa para deixar fluir a consciência de que uma vida caiu na arena. Uma pausa para aceitar que sou frágil e efémero. Uma pausa para reconhecer que a minha identidade inchada não se sustenta à base dos meus esforços. Uma pausa para ver que pertenço ao coração de Deus, e que será aí, sempre aí, que terei um lugar de refúgio. Uma pausa para engravidar a restauração de forças. Uma pausa para renovar a minha mente visionária, energia profética e determinação vocacional. Uma pausa para elogiar e acarinhar, a coragem, a velocidade e a força espiritual, do meu irmão em Cristo. Sem essa pausa ... não resistirei. Irei soçobrar. Naufragar. E me abominar.
Samuel Nunes

sexta-feira, junho 18, 2004

Do editor
O número 24 d'Os Animais Evangélicos vem com um vinco político. Ressalva-se que não houve qualquer contacto prévio entre mim e o Pedro Leal. Quis Deus.
TOC


"A procissão dos infiéis".

Orgulho e preconceito
O meu orgulho evangélico nunca residirá na sofisticação alternativa que o "credo desviante" pode suscitar. Aqui no interior não há disso. Nunca me lembro de, na pequena Tondela, a minha religião ter causado curiosidade cultural a qualquer amigo. Jamais me confessei protestante para impressionar miúdas. Isso não resulta, em Tondela não resulta.
A minha vergonha evangélica reside - isto sim defino mais facilmente - em tudo o que se confunde com cristianismo e não passa de diletantismo denominacional. Sufoca-me mas não me leva a desistir. Por muito que ataque a mediocridade dos cultos aponto de dentro, não falto a um. Se escrevo a criticar a insipidez das palavras fico-me também pela inoperante escrita e vejo homens subir ao púlpito para que eu não tenha razão. Quando reparo nas agruras da vida comunitária conto as bênçãos. Provavelmente isto permanecerá intrincado, mas a minha vergonha evangélica poderá estar na raiz de grande parte do meu orgulho evangélico.
Não me considero um hipócrita sempre desunhado na crítica ao sistema que subscreve. Sou um tipo da pequena Tondela, demasiado provinciano para ser insidioso, demasiado bem-intencionado para ser fútil. Restrinjo à minha pessoa toda a ironia que acabo de traçar. Talvez me tenha habituado em demasia a escrever censuras aos evangélicos mas a estratégia inconsciente é "menos mal" elaborada: antecipo-me às críticas exteriores quando eu próprio, assumindo-me evangélico, nos repreendo, evangélicos assumidos, orgulhosos ou envergonhados.
Com isto da Internet a "curiosidade cultural" ou as "miúdas impressionadas" podem estar na janela da frente. A pequena cidade beirã perde fronteiras que não faço ideia até onde se alargam. Oportunidade soberana para desfilar o meu "orgulho evangélico", especialmente este incaracterístico que desprendidamente ataca os seus. A aceitação intelectual pode estar mesmo ali atrás de meia dúzia de conhecimentos sobre profetas menores. Ei, olhem todos para mim, o do "credo desviante"...
...Meu Deus, que porcaria de orgulho é que eu poderia ter nisto?
A carapuça não me serve e, sei-o sem margem para dúvidas, está igualmente uns largos números abaixo da cabeça dos meus amigos que partilham este espaço dos Animais Evangélicos. No dia em que decidir aproveitar-me da religião para me auto-promover que serei mais do que um diletante denominacional? Terei vergonha.
Samuel Úria

The South Will Rise Again?
A Convenção Baptista do Sul saiu da Aliança Baptista Mundial. Não me interessa fazer uma análise séria e imparcial do caso. Outras paróquias fá-lo-ão muito melhor. Um dos argumentos usados pelos sulistas é de que a ABM tinha vindo a assumir uma postura política "à esquerda". Anti-americana e teologicamente liberal.
Sabemos o que está em causa. Os baptistas do sul têm-se mostrado publicamente ao lado de Bush. Ora, o presidente americano é uma meretriz babilónica até aos olhos dos geralmente insípidos baptistas europeus. Basta ver a forma ingénua como Carter tem sido promovido como "exemplo" para a actual administração. O velho Jimmy foi azarado com o Irão mas aprendeu a construir casas para os pobrezinhos e lá lhe deram um Nobel. Da mesma maneira como o parodiante Moore recebeu a Palma. O Velho Continente tem sido próspero em recompensar quem junte mais gasolina à fogueira "anti-imperialista" (como eles gostam de dizer).
Provavelmente a Convenção Baptista do Sul até faz bem em sair da ABM. Escusa-se de se pegar nas questões ditas teológicas. Não será por aí. Não é necessário apimentar a coisa com acusação de simpatia pelos efeminados. Como diz Denton Lotz, o secretário-geral da ABM, somos todos "conservative evangelicals". E é verdade.
Raramente a política tem sido motivo de divisão entre evangélicos. Contudo, parece que os tempos nos empurram para a assunção de diferenças. A concórdia entre gente tão diversa é um valor relativo. Afinal muitas vezes estão "reunidas" formas antagónicas de olhar o mundo. Quem não sabe o que é juntar um pentecostal com um baptista?
No quintal que são os baptistas portugueses muito me apercebi que era escândalo para os irmãos apoiar a intervenção americana no Iraque. Trágica ironia. Tudo o que importamos da América e me revolve as entranhas foi esquecido neste momento de crucial ódio contra-atlântico. Muitos dos pastores que tão alarvemente ridicularizam agora os americanos são aqueles que, mal aterram no aeroporto, não vêem a hora de transformar as suas igrejas de subúrbio no último grito da moda evangélica em terras ianques. E um pouco de vergonha?
Debaixo da designação "evangélicos" cabem carismáticos em chamas, moderados que lêem o Público, cristianofascistas, intelectuais de esquerda, exorcistas sem paramentos, papa-versículos, obcecados pelo inferno e superintendentes da Escola Dominical. Não era bom se a banda parasse de tocar essa cantiguinha brasileira pirosa e começássemos a assumir as nossas divergências? Não temos de acabar as nossas reuniões sempre com um amén.
Tiago de Oliveira Cavaco

[Sem título]
A ideia, sabe-se lá com que fim, é clara. Fazer confundir o Presidente norte-americano George W. Bush, e as suas acções políticas e militares, com a totalidade dos evangélicos. Os autores dos textos são católicos com aparentes "protestantivites" mal curadas, como Frei Bento Domingues e Sarsfield Cabral, e agnósticos empedernidos, como Mário Soares. Os artigos vão saindo com regularidade nos jornais desde há uns meses para cá.
Obviamente que esta tentativa de generalização é um disparate. Tanto o denominado "sionismo cristão" como a intervenção militar no Iraque, as duas acusações maiores, têm entre os evangélicos apoiantes e detractores. Aliás, a reacção à guerra que depôs Saddam está longe de se poder fundamentar num único ponto de vista. O cristão, pela sua nova natureza, ama e trabalha para a paz. Mas isto não significa que seja necessariamente pacifista. Pacifismo implica a ausência do uso da violência em qualquer circunstância. E se há cristãos que vivem coerentemente, e muitas vezes com um preço elevado, este ideal, como os Menonitas, também é verdade que para a maioria a conquista da paz e da justiça justifica, em situações extremas, o recurso às armas. A Segunda Guerra Mundial constitui aqui um caso paradigmático. Nesta perspectiva, a invasão do Iraque pode ser valorizada de forma diferente por dois evangélicos sem que haja entre eles um conflito doutrinário. Os meios para alcançar o objectivo podem variar. O objectivo em si, neste caso a paz, esse sim, importa ser comum.
Mas, mais do que o conteúdo erróneo dos artigos, que num meio tão ignorante da diversidade religiosa como o nosso, nem choca muito, incomoda-me a reacção que um número crescente de evangélicos vem tendo em relação à referida "campanha".
Concerteza que é muito mais agradável sermos associados a um Prémio Nobel da Paz, como Jimmy Carter ou Martin Luther King, do que a um impopularíssimo e insultado George Bush. No entanto, alguns evangélicos parecem ter esquecido que não é o reconhecimento público ou o barómetro da opinião pública que definem um cristão. Bush pode ser uma companhia incómoda para uma minoria religiosa em Portugal. Mas não é por isso que podemos por em causa a sua fé ou renegá-lo como irmão em Cristo. As suas convicções religiosas são, tanto quanto se conhece, claramente evangélicas. Terá opções doutrinárias que me causam perplexidade. Mas o mesmo acontece entre um baptista e um carismático, e isso não constitui motivo para se renegarem mutuamente.
Tal como as opções politicas do Presidente norte-americano devem ser avaliadas à luz do Evangelho, também é sob essa mesma luz que se reconhecem os que partilham connosco a fé em Jesus Cristo. A bitola da popularidade e a escala benefício/prejuízo não ficam nada bem nas mãos evangélicos.
Pedro Leal

O Naufrágio
Quando este texto estiver nos "Animais" estarei a banhos nas praias do Mediterrâneo. É uma reincidência! Fico sempre fascinado com este Mar imenso, dum azul fundo e límpido. Foi neste mar que há 2700 anos Jonas foi cuspido dum peixe. Foi neste mesmo mar que há 2000 anos Paulo foi cuspido dum barco. Os dois naufragaram neste mar. As semelhanças entre os dois passam da coincidência e viram cristocidência. Jonas enamorado duma planta (foi o primeiro profeta ecológico), Paulo romanceado com pessoas: "nem um cabelo se perderá!" Jonas alienado a dormir no meio da borrasca, Paulo empenhado e envolvido na salvação do barco e nos relacionamentos pessoais a bordo. Jonas tem um encontro imediato com uma planta, Paulo com uma serpente. Jonas dando importância à matéria - "skarah" - comprando todo o barco, Paulo interessado no espiritual. Jonas vendo o natural - bílis no estômago do peixe, Paulo vislumbrando o sobrenatural: "um anjo". Jonas fugindo da face de Deus, Paulo dialogando e orando com Deus. E, fico-me nas ambiguidades da pergunta: serei Paulo, ou serei Jonas? Nas entrelinhas está a resposta. Há um desejo enorme em mim de ser Paulo, e há uma pré-disposição brutal de ser Jonas. E, neste ser e não ser, fico olhando o Mar, numa dança e contradança de nunca esquecer.
Samuel Nunes

sexta-feira, junho 11, 2004

Do editor
Quatro textos curtos para o número 23 d'Os Animais Evangélicos. Aconselha-se a última Terra da Alegria. Com muito bons artigos.
TOC


"Os Animais".

Nada a acrescentar
Gostaria de ouvir o Salmo 119 no original, sorver a musicalidade que lhe imagino. É um salmo enorme, em tamanho o maior, mas ainda assim lhe sorveria as palavras com mais gosto do que nas minhas entregas ao psicadelismo repetitivo e demorado dos Velvet Underground. Gosto dos Velvet, mas a Bíblia é a Bíblia e o Salmo 119 é um salmo enorme que fala da Bíblia.
Ocasionalmente abri nesse capítulo certo Domigo há muitos anos. Apreciava números ímpares e pedi à minha avó que lesse o versículo nove. Gabou-me a escolha e disse-o de cor. A explicação foi brinde. Talvez tenha aprendido o significado de "mancebo" nesse dia, mas da lição nada recordo. O mais certo era ter estado a ouvir a minha avó como o fazia com qualquer pessoa durante a infância: em completa distracção. É pena; perdi provavelmente o único estudo sobre esse capítulo que valia a pena.
Nos cultos hoje em dia, a minha concentração continua a receber parcimoniosamente as análises ao Salmo 119. Não é por gostar pouco ou achá-lo pobre, penso o exacto contrário. Detenho antes a ideia de que é extenso porque nada se pode acrescentar. É repetitivo em palavras e ideias para ser claro.
Quem gosta da Bíblia já a leu por completo. Quem gosta da Bíblia mas é preguiçoso já leu, pelo menos, o Salmo 119. Quem gosta do Salmo 119 não pode ser preguiçoso com a Bíblia.
Lá porque me apetece ouvir o entoar deste capítulo na língua original e pouco me apetece estudá-lo não quer dizer que ando à procura de experiências ascéticas em mantras ininteligíveis indeferindo uma racional devoção. Quero é não dizer mais nada sobre o salmo, quero que seja conclusivo. Quero, sobre o maior dos salmos, fazer o meu texto mais pequeno.
Samuel Úria

Votar
Sem qualquer pretensão a Presidente da República, não quero deixar passar esta data pré-eleitoral sem uma reflexão acerca da importância do voto. Escrevo, obviamente, como cristão. Interessam-me, por isso, mais do que conceitos algo vagos, como cidadania ou participação cívica, os argumentos fundamentados na expressão bíblica. Sendo assim, e numa análise não exaustiva, encontro no Novo Testamento pelo menos duas boas razões para ir colocar o meu voto na urna no próximo Domingo.
Desde logo, a possibilidade de contribuir para uma sociedade melhor. Mesmo parecendo uma voz ínfima no meio da multidão, o voto constitui sempre uma forma de influência. Às vezes dilui-se entre milhões, outras vezes quase que o conseguimos ver na diferença decisiva (o referendo sobre o aborto é, neste caso, um bom exemplo). Mas, quaisquer que sejam as circunstâncias, permanece a responsabilidade de participar. Um dos privilégios de viver em democracia é, precisamente, a possibilidade de cada cidadão dar o seu contributo para decisões que dizem respeito ao colectivo. Não me parece que o cristão, no seu papel de "sal e luz", esteja em condições de abdicar de tal oportunidade. Mesmo que a desilusão com os políticos seja grande, há sempre uma escolha a fazer. Qual a proposta que chega mais perto de uma sociedade mais justa e fraterna?
Outra razão para votar no próximo Domingo é o princípio da obediência às autoridades. Pode até parecer estranho e impopular invocar tal pretexto quando a reputação dos que nos governam, independentemente da "cor" partidária, anda pelas "ruas da amargura". Mas, de facto, esta é uma doutrina bem clara na Bíblia (Tito 3:1; I Timóteo 2:2; Romanos 13:1). Note-se que não se descrimina aí o tipo de regime político ou a qualidade dos governantes. Não há uma lista de "ses". Declara-se apenas a submissão ao poder instituído, como forma de cooperação para a paz e boa ordem social. Por isso, devem merecer toda a consideração o apelo à participação eleitoral feito pelo mais alto magistrado da nação, e a Lei máxima do país, que define o voto como um dever.
Pedro Leal

O Mistério
O Sábio Salomão ficava espantado com o mistério do vôo da ave no céu e com os misteriosos caminhos dum homem com uma jovem. O último já não me surpreende, enquanto o primeiro ainda tem um fascínio para mim.
O que verdadeiramente me espanta é o mistério da Graça Quotidiana. Aquela que me aguça o meditar. Aquela que me faz aceitar os limites da minha dúbia humanidade. Aquela que me deslumbra com a amizade, os sonhos, a mesa, o romance. Aquela que me faz acreditar na Igreja. Não a Igreja instituição. Deixo essa para os "papa-cargos" da nossa praça. Mas aquela Graça revelada numa Igreja feita de tecido humano, feita gente. Onde se cultiva o espaço para errar, para sorrir, para ser. Os acontecimentos extraordinários e as frases bombásticas já não me seduzem. Abomino-as com uma determinação serena. Tranquilamente, abro os braço à rotina. Aquela rotina antecipada da Graça Quotidiana de Deus. Haverá aqui um mistério!?
Samuel Nunes

O sermão do Tio Teo
Foi o meu tio Teo, e também meu actual pastor, que me ensinou que Pedro foi um mau exemplo em muitos gestos precipitados mas o melhor a perceber quem Jesus era. Não esqueço esse sermão em que o entendi. Estava sentado no topo das minhas ultra-convicções absolutas de adolescente evangélico quando a passagem bíblica me recordou do encontro entre Jesus e o discípulo na praia, após a ressurreição.
O amor-próprio de Pedro estaria ao nível da alcatifa. Ser precipitado é uma coisa, ser traidor é outra. E é precisamente a este pobre diabo que o Mestre coloca a pergunta teimosa: "amas-me?".
Foi um pouco da minha estrada para Emaús. Ao ouvir aquela palavra abriram-se-me os olhos para algo mais do que uma crença sólida, orgulho de doutrinadores. Arrisco. Talvez na baixeza de negar o Salvador por três vezes tenha sido Pedro o que dele mais se aproximou. "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja".
Por personalidade e educação sou levado a nutrir pouca reverência por gente como Pedro. Aflige-me a intempestividade, a falta de recato e ausência de bom-senso. Mas as Escrituras permanecem. O senhor dos dedos rápidos para pegar na espada foi quem disse: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo".
Tiago de Oliveira Cavaco


sexta-feira, junho 04, 2004

Do editor
O número 22 d'Os Animais Evangélicos regista o regresso do Tiago Branco. Mais
- as cantigas pegajosas de namorados excessivos
- os braços vigorosos dos trapezistas
- a receita contra a mediocridade
- e um jardim por jardinar.
Para a semana há mais.
TOC


"O jardim a tua vida".

Da chatice
Leio um artigo de um evangélico insuflado. A coisa é chatíssima. Reconheçamos: os evangélicos são educados para escrever coisas que nos aborrecem até à morte. Receita: uma tese que edifique, um queixume disfarçado de exortação ética, uma tenrinha esperança de unanimidade, uma presunção de inspiração divina instantânea, um esforço inútil de aparência humilde, uma procura ofegante de objectividade. Clamemos por livramento.
O Samuel Úria já defendeu a teoria há umas semanas atrás. A mediocridade é uma norma que se confunde com o batimento cardíaco das nossas comunidades. Não se defende aqui uma liturgia circense, equívoco que tantos seguem convictos de que o Espírito é um mecenas excêntrico. Não se apoia aqui comunidades "alternativas" ? excrescências como grupos de artistas, intelectuais e endinheirados que não encaixam no conceito tradicional de igreja, como eles gostam de dizer. Não se patrocina aqui manifestos de cidades abaladas pelo magnetismo do centro evangélico local por obra e graça de ideias tão suspeitas como a de "reavivamento". Sou um lacaio inexpressivo da minha igreja na sua acepção mais burocrática. Creio abusivamente que Jesus nos condenou às agruras da membrazia. Deixo os arrebatamentos e as conversões em massa para os fanáticos da bola.
Contudo, parece-me simples afirmar que para nos livrarmos desta praga de frigidez cultural que nos aflige há que entender a igreja enquanto soma de cabeças. Individuais. Únicas. Invioláveis. Prescindamos do exército de ávidos evangelizadores sem escrúpulos para apostar em pessoas. Tão somente.
Um conselho prático, como a turba sempre aprecia: na Escola Dominical ensinar as criancinhas a repetir todos os domingos, a seguir à passagem bíblica da semana, a seguinte frase de Kierkegaard: "a multidão é falsidade". Semeemos. Com a bênção do Senhor colheremos no espaço de 20 anos.
Tiago de Oliveira Cavaco

O trapézio
Henri Nouwen relata um encontro que teve com os trapezistas dum circo no seu livro "Sabattical Journeys". Um relato memorável. Conta Henri Nouwen que os trapezistas dão-nos um grande exemplo de confiança. Os "voadores" têm de confiar inteiramente no seus "apanhadores". Os "voadores" fazem os seus saltos duplos e triplos, mas depois têm de ser agarrados pelos "apanhadores". Os saltos dos "voadores" são espectaculares porque os "apanhadores" esperam por eles no lugar certo, e no segundo certo. E há mais. Os "voadores" nunca devem procurar os "apanhadores". Estes estão lá no momento preciso para arrancarem os "voadores" do espaço.
Na vida há muita gente com medo de voar. Medo de largar o trapézio. Medo profundo de darem "saltos espectaculares" na vida. Não amam porque têm medo da rejeição, do abandono, do desencanto. Não lutam porque têm medo do descrédito. Não opinam porque têm medo do ridículo. Não dão porque acham que podem ser explorados, abusados, achincalhados. Não mudam porque receiam o desconhecido, o que não controlam. Pais que não arriscam dar autonomia aos filhos porque têm medo de os perder. Filhos que não comunicam porque têm medo do ralhete paterno. Casais que preferem o "conforto" do divórcio amoroso porque têm medo da restauração de relacionamentos que obriga à transparência emocional.
E o medo paralisa ...
João diz: "o amor escorraça o medo". Antes João afirmara que "nós amamos porque Deus nos amou primeiro". E é aqui que encontro a base para os voos da vida. Aqui está a raiz da minha aventura. Se Deus me ama, então tenho coragem para dar novos passos, para desvirginar florestas, para pisar areias calmas, para desbravar emoções paradas, para rebentar com instituições falidas, para arriscar novos sonhos, para amar de forma extravagante.
Se os pais cressem mais no amor de Deus, certamente seriam menos possessivos com seus filhos. Se os casais acreditassem no amor de Deus, seriam mais genuínos e generosos. Se os jovens acreditassem no amor de Deus, seriam mais aventureiros na vida da Igreja. Se os crentes acreditassem no amor de Deus, seriam mais compreensivos com as falhas alheias. Se eu confiasse inteiramente no amor de Deus, seria melhor pastor.
É isso que nos ensina Cristo. A afirmação foi clara e soou forte: "este é o meu Filho amado, em quem tenho prazer". São estas palavras do Jordão que dão a força de viver a Cristo. Deus o Pai, é o "apanhador". Por isso Cristo sobe ao Calvário, por isso Ele ama os inimigos, por isso Ele cuida das prostitutas e dos marginalizados, por isso Ele confronta as instituições fossilizadas, e por isso Ele denuncia a arrogância dos poderosos.
É urgente sairmos da zona de conforto em que as Igrejas se transformaram. É premente termos a ousadia de soltar as mãos de trapézio e .... voar. Perguntaremos: corremos o risco de nos estatelarmos no chão? Não! Temos um "apanhador" atento e infalível: "eis que estou convosco sempre".
Samuel Nunes

Paixão por Cristo
Sei do que falo. Sei-o como qualquer miúdo que aprende uns acordes de guitarra. Miúdo conhece miúda, miúdo apaixona-se por miúda. Miúdo pega na guitarra e escreve canções de amor. Fui um desses e sei do que falo, tenho a minha quantia de cantigas assim.
"Lamecha, a e s.m. FAM 1.Baboso, mimado. 2. Namorador ridículo."
O dicionário nada guarda de bom para a carapuça que me serviu. Já eu, obviamente, tento inocentar-me: "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus", às namoradas o que é das namoradas.
A paixão apresenta-se uma coisa temível tanto que nunca estranhei de todo as analogias poéticas, magníficas ou corriqueiras, com a loucura. As "canções de amor" não são propriamente temíveis, mas no meio de um estado alterado há sempre doses de irrazoabilidade desmedidas. Com isto, e reassumindo o papel de miúdo que escrevia as cantigas, pouco quero exemplificar quanto à perigosidade das músicas lamechas, duvido que o sejam em demasia. A irrazoabilidade é intrínseca ao pseudo-poeta apaixonado, é essencial à relação trovador-musa.
Olho com desconfiança as vociferadas intimidades com Deus. Desde que penso nisso detesto quando o ideário romântico se mescla com o devocional. A filiação no Criador dá-me uma visão incestuosa de certas expressões a Ele endereçadas. Posso estar errado, mas o bardo meloso dentro de mim conhece muito bem a fogosidade e efemeridade das paixonetas onde a transcendência da expressão prevê uma validade extinguível. Conheço a irrazoabilidade.
"Amor" foi primeiramente um conceito divino. Já o humanizei para escrever músicas xaroposas. Com os mesmos acordes, mudando uma palavra ou outra, poderia cantar o que compus num período de louvor. A carne sacrificada aos ídolos, o mel sacrificado à musa, jamais deveriam servir de segunda refeição. Humanizar o amor, proferi-lo, dissecá-lo, não aproxima invariavelmente de Deus. Mais vale entregá-lo em sorrisos, porque é exigido, do que tecer exigências divinas para auto-satisfatoriamente o entregarmos.
Deus preenche o vazio e nós devolvemos para ficar ainda mais atestados, mas, nisto do Louvor devemos lembrar o exemplo de Caim e Abel: não interessa o que queremos dar a Deus, por muito enamorada que seja a intenção, interessa antes o que Ele pede.
Estou apaixonado mas não me conformo com a praxe da paixoneta adolescente. Em vez de melífluas declarações de amor três vezes repetidas pensarei no apascentar das ovelhas. A César o que é de César, a Deus o que é da namorada ou à namorada o que é de Deus? Não?O pedido na Bíblia é para "louvar com inteligência" e, bem o provam as minhas cantigas adolescentes, os apaixonados são todos uns palermas prazenteiros.
Samuel Úria

História para Crianças, ou "O Jardim a Tua Vida"
Era uma vez um jardineiro que um dia decidiu plantar o jardim mais bonito, mais vistoso e mais agradável alguma visto. Vai ser a minha obra prima, pensou, vou procurar as sementes mais preciosas, as plantas mais bonitas, e o frutos mais perfumados e vou juntá-los num jardim de respirar fundo, de encher o coração.
E assim, foi. Partiu e viajou pelo mundo inteiro, por montanhas e vales, pelos lugares mais ermos e desabitados enfrentando perigos e tempestades, em busca das sementes mais preciosas, dos rebentos mais frágeis, e dos perfumes mais raros. Só parou quando conseguiu todas as sementes e rebentos de árvores, plantas e flores que tinha imaginado para o seu jardim. Regressou, voltou ao lugar que havia escolhido, e durante meses a fio, trabalhou para construir aquele que seria o mais belo jardim de todos os tempos. E uma a uma, as mais preciosas sementes, aquelas que dariam as mais belas e frondosas árvores foram plantadas no centro do jardim. Com muito cuidado, a semente da amizade foi colocada, acondicionada, com a melhor terra, e regada. Da mesma maneira, as sementes da verdade e da justiça foram cuidadosamente plantadas, de modo a formar, juntamente com a semente da amizade, um triângulo. No centro deste triângulo, foi plantada a mais preciosa semente do todas, a semente do amor, a jóia e a vida daquele que viria a ser o mais belo jardim de todos os tempos.
Com um cuidado paternal, todos os dias o jardineiro voltava ao seu jardim, para cuidar de todos os pequenos rebentos. Podava, regava e acondicionava cada rebento com toda a dedicação e carinho (sim, porque as pequenas plantas, são como as crianças, precisam de atenção e de carinho) e assim, todas cresciam fortes, bonitas e saudáveis. O jardim começava a mostrar toda a sua beleza.
Porém, um outro jardineiro ficou com muita inveja por ver um jardim tão bonito, e não conseguindo suportar mais a raiva, decidiu no seu coração destruir aquele jardim. Mas quis destruí-lo com um requinte de malvadez, sem deitar fogo ao jardim, sem abater as árvores ou pisar as plantas. Decidiu desfigurar o jardim, corrompendo o que nele havia de mais belo. Assim, lançou-se numa busca pelas sementes das plantas mais terríveis, e dos frutos mais venenosos, e quando os conseguiu, escondeu-se à entrada do jardim, e esperou pelo cair da noite. Quando a lua já ia alta, correu até ao centro do jardim onde cresciam fortes e bonitas as árvores da amizade, da justiça e da verdade, e no centro destas três a árvore do amor. E do seu saco negro retirou uma semente da árvore da cobiça, e plantou-a mesmo ao lado da árvore da amizade. E ao lado da árvore da verdade, plantou a semente da mentira, e ao lado da árvore da justiça, plantou a semente da ganância. Não plantou nada ao lado da árvore do amor - ele sabia que o trabalho estava feito!
Nas noites que se seguiram, continuou a visitar o jardim, regando as suas sementes de destruição e cuidando delas, da mesma maneira que o bom jardineiro cuidava das suas.
Os dias foram passando, e as árvores da amizade, da verdade e da justiça que outrora cresciam fortes e vigorosas, travavam agora uma terrível luta pela sobrevivência. Apenas uma das árvores, que estavam juntas podia sobreviver. Sim, porque a verdade, não vive, quando vive a mentira, e a amizade não sobrevive à cobiça, e a justiça não consegue viver ao lado da ganância. E a árvore do amor aos poucos definhava, porque o amor não sobrevive no meio da cobiça, nem da mentira, nem da ganância.
O fim desta história depende de cada um de nós, pois no nosso coração, tal como o jardim, temos sementes de amizade, justiça, verdade e amor. Mas temos também sementes de mentira, de cobiça e de ganância. O que acontece é que muitas vezes não percebemos que estas sementes não podem viver ao mesmo tempo. E muitas vezes não percebemos que o amor não sobrevive à cobiça, nem à ganância, nem à mentira. Também é fácil esquecermos que as sementes têm de ser regadas, e cuidadas, tal como as crianças, e que se não as regarmos, elas nunca crescem.
Mas quase todos queremos ter um jardim bonito, portanto o final da história depende de cada um de nós. Depende de quais vão ser as sementes que regarmos, exercitamos e fortalecemos, e depende de quais vão ser aquelas que decidimos arrancar.
O jardim, é o nosso, a vida é a nossa, e o coração é o nosso. Por isso fazemos com eles o jardim que quisermos.
Tiago Branco

sexta-feira, maio 28, 2004

Do editor
O número 21 d'Os Animais Evangélicos traz reflexões pouco espirituais. Aleluia!
- o capuz de Bush
- a concordata católica
- o cozido à portuguesa
- e a revisitação de Shaolin.
É imprimir e ler.
TOC


"Os Jovens Fariseus de Shaolin".

Depois da ceia
Não há grande virtude em arriscar comparações entre a fé e a cozinha. Mas a asneira não será suculenta se dissermos que o cristianismo é como o cozido à portuguesa - confeccionado de formas diversas consoante o local. Serve a tese gastronómica para fazer eco de artigo pertinente lido na Christianity Today, onde Chris Armstrong reflecte sobre a sobrenaturalidade de alta voltagem do cristianismo africano.
Quis a Providência assim espalhar os crentes pelo globo: os do mundo ocidental hirtos e pouco permeáveis a doutrinas que desafiem os tubos de ensaio da Revolução Francesa; os outros, gingões na sua animada compreensão a cinco dimensões da terra e céu. Provavelmente cada um tem o que merece.
Nem sempre estas diferenças são nítidas. Se há um bispo gay com que o mundo dito desenvolvido quer provar alguma coisa, lá barafustam as paróquias africanas que isso vai contra a natureza. Tirando esta pequena peritagem do acidente, não são muitas mais as ocorrências.
Onde para uns há muros a derrubar em direcção a um universalismo minimalista e gasoso justificado pelo ecumenismo, a tolerância e os bons fígados do clero progressista, para outros há incitamento à batalha espiritual contra demónios específicos e de Bilhete de Identidade nas garras. As igrejas pentecostais no ocidente permanecem enquanto sucursais curiosas e eficientes de uma mente africana numa cultura europeia. Daí talvez a sua preciosa irrazoabilidade de base: por vezes parecem brancos a querer ser pretos.
Há uma passagem na Escritura que vale a pena lembrar. O capítulo nove do Evangelho de Marcos conta que os discípulos quiseram pôr na ordem um sujeito que em nome de Jesus expulsava demónios e que, contudo, não integrava a comitiva oficial dos seguidores do Mestre. Mas Jesus respondeu: Não lho proibais; porque ninguém há que faça milagre em meu nome e, logo a seguir, possa falar mal de mim. Pois quem não é contra nós é por nós. O mais interessante é que cada um ficou no seu lado a tratar dos seus próprios negócios. Lá se vai o fundamento de uma igreja oficial, aprovada pela legitimidade apostólica e parte-se o pífaro que toca a chamada para a unificação dos crentes. É Cristo que dá o exemplo.
Os cristãos têm nas Escrituras uma boa medida para um saudável relativismo cultural (termo sinistro mas para os efeitos útil): se em Portugal os baptistas não fumam, na Espanha a absolvição é rápida; se no Brasil os pentecostais não bebem, na Lusitânia faz-se um brinde; se para os protestantes um "Avé Maria" é digno de um rápido exorcismo, para os católicos o preservativo detém o exclusivo satânico. Cada um cozinhe à sua maneira. Convidemo-nos uns aos outros para experimentar o tempero e agradeçamos à mesa com uma oração. Depois, cada um siga o seu caminho para casa.
Tiago de Oliveira Cavaco

Com a Justiça concordo
Imaginemos a seguinte situação.
O Estado português assina com uma organização representativa das pessoas de pele ?branca? um acordo conferindo a esse grupo de cidadãos tratamento diferenciado relativamente aos cidadãos com outras "cores" de pele.
Os governantes responsáveis pelo documento, quando questionados sobre a equidade e eventuais aspectos discriminatórios do acordo, argumentam que não senhor, não há descriminação nenhuma, que se mantêm o espírito da Constituição, não se promovendo tratamentos diferenciados. Que apenas foi tomada em conta a profunda ligação histórica entre as pessoas "brancas" e a nação portuguesa. Ligação, aliás, que estava já presente na própria fundação do país, e que depois acompanhou, nestes quase nove séculos, todos os grandes momentos da história pátria. Ora, essa relação tão rica justifica um acordo especial entre os "brancos" e o Estado, no sentido de salvaguardar interesses legítimos de ambas as partes e permitir o normal desempenho das responsabilidades sociais. O que, convém voltar a referir, não significa qualquer tipo de descriminação. O acordo aplica-se aos cidadãos de pele "branca" mas, para todos os outros, vigora a lei geral do país.
Acrescente-se a esta argumentação o facto de o documento ter sido negociado no mais completo segredo, conhecendo-se apenas, no momento da assinatura, resumos pontuais divulgados pela organização "branca".
Não é difícil imaginar o repúdio generalizado que tal acordo suscitaria. Desde os partidos políticos até às organizações cívicas, humanitárias e religiosas, todos (ou quase) fariam ouvir a sua voz pedindo a anulação do documento, invocando discriminação com base na cor da pele.
Pois bem, na semana passada foi assinada, com argumentação e métodos similares, a Concordata entre o Estado português e a Igreja Católica Romana.
Pessoalmente, interessa-me pouco se a nova Concordata contém mais ou menos privilégios que a anterior, se repara ou agudiza injustiças, se foi remodelada por vontade das partes ou forçada pela legislação europeia. O que eu quero mesmo é que não haja Concordata. Nenhuma. Nem com católicos, nem com evangélicos, nem com protestantes, nem com muçulmanos. Exactamente da mesma forma que também rejeito leis especiais para "brancos", "pretos", ou "amarelos". Acredito que o princípio da separação entre o Estado e as igrejas tem fundamento bíblico. E que por isso, mais do que uma ideia generosa ou politicamente correcta, esta separação é um instrumento de justiça.
Pedro Leal

O capuz
Se a notícia for verdade, e de morte. Corre por aí que existem fotos de George Bush a dirigir uma reunião para planear a invasão do Iraque, durante Janeiro de 2003, com um capuz na cabeça. Um capuz, sim! Em tudo semelhante ao modelo tornado famoso, pelas fotos de abusos humanos levados a cabo na prisão de Abu Ghraib. A ser verdade, não é de admirar que os obedientes soldados do "texano", se tenham familiarizado com o dito capuz e o tenham elevado a ícone na nobre arte de violar prisioneiros de guerra. E a continuar nesta estrada para a fama o capuz é bem capaz de fazer as delícias de estilistas mais feéricos, e veremos a Linda Evangelista a passar na pasarrelle um "capuz muito John Galliano". O capuz do Bush estará para a invasão do Iraque, como o bigode do Hitler esteve para a invasão da Polónia. Adiante!
Entretanto, no seu último discurso o "texano" vem dizer que tem uma solução mágica para a vergonha da prisão de Abu Ghrail: a solução é a demolição. Achei estonteante. Fiquei siderado com tal subtileza e graciosidade de movimentos. Incrível! Nem Deus se atreveu a tanto. Quando viu que a raça humana estava a passar dos limites, Deus manda um tremendo dilúvio ... mas, salvou 8 pessoas e os animais. Bush não! Prefere a demolição, sem salvar nenhum tijolo que seja. Claro que as más línguas já dizem que há um original do capuz bem guardado. Isto é sintomático dum indígena boçal e simplório. Vejam: a preocupação não está em condenar os sacanas que mancharam o nome das democracias ocidentais. A preocupação é com a limpeza cirúrgica da lembrança. Bush, já que se diz cristão, devia saber que a consciência não se limpa apagando a memória. Por muito que ele faça "delete" no "histórico" das vergonhas visitadas pela soldadesca yankee, não conseguirá convencer ninguém da superioridade da raça americana. Mas, em matéria de limpezas de imagens os peritos eram os fariseus. Bush é caloiro nestas andanças. Os fariseus eram especialistas em limparem o exterior do prato, mantendo o interior cheio de rapina; eram eles que caiavam a fachada dos sepulcros, mas por dentro cheiravam a podre. O "texano" é um menino de coro ao pé dos fariseus. Mas um menino esquizofrénico a brincar aos cowboys. É pena!
Samuel Nunes

sexta-feira, maio 21, 2004

Do editor
Atingimos o número 20 d'Os Animais Evangélicos.
Nele:
- o Samuel Nunes invoca a Fernanda Serrano para reabilitar o humor nas igrejas evangélicas
- o Pedro Leal arrepia-se com o visionamento de decapitações
- o Samuel Úria procura desesperadamente por um pouco de sal
- eu sugiro laudos à Bíblia sobre o punk rock
- e o Paulo Ribeiro exorciza o Marcelo Rebelo de Sousa que anda por aí em tantos púlpitos.
TOC


"Os lideres evangélicos que se inspiram no modelo de Marcelo Rebelo de Sousa para explicar ao povo os malefícios ocultos das mais diversas actividades seculares. Da música às batatas fritas satânicas".

Luz frouxa
Os alimentos no cardápio da Igreja resultam, demasiadas vezes, em digestões difíceis. Não por custarem a deglutir, não por deixarem amargos de boca. Pelo contrário. É difícil a digestão das substâncias que o organismo desconhece como aproveitar, doces alimentos isentos de mastigação, hóstias costumeiras.
Mediocridade! Tem onze letras porque me dei ao trabalho de contá-las. Não é uma possessão demoníaca que se grite inflamadamente do púlpito, mas que outra coisa, senão a mediocridade, partilha a característica divina da omnipresença?
Uma colher de sais efervescentes facilita digestões mais complicadas. Já o sal da nossa Fé mantemos longe de água. Receamos, na fervência, o dispersar daquilo que a ignorância permite manter coeso. Um copo cheio de conhecimento líquido pode fazer desaparecer, a olho nu, tudo o que cegamente decidimos aceitar. Temos medo da diluição do nosso sal; sabemos que a constância é uma virtude espiritual e preferimo-nos incultos sensaborões. Mas, "se o sal for insípido"...
Desagrada-me a adjectivação do "secular" versus o "não secular", como se fizessem parte de realidades diferentes. Naturezas distintas, concordo, mas a desconformidade entre elas é tão pronunciada que escusadamente se pronunciaria. É outro desporto evangélico que submerge na mediocridade. A satisfação pela mera distinção atinge, infelizmente, o auto-declarado crente zeloso. E para quê? Preocuparmo-nos com a diferenciação do que "edifica" e "não edifica" edifica alguma coisa? Esqueço a irritação que este vício me traz para postar uma verdade: nem tudo o que diz respeito à conversa eclesiástica edifica, assim como muita coisa edificante existe fora desse contexto. A Graça de Cristo basta, mas aos que não gracejam néscia e emproadamente contra tudo o resto.
Nisto da mediocridade parece que falo de um grande black-out: a falha é geral. Contraditoriamente, determinado crente que faz tudo para trancafiar a identidade social mantendo a espiritual, satisfaz-se intelectualmente a dizer mal do governo ou do George W. Bush. Condescende com ladainhas pouco exigentes. Uma preguiça analítica assim forma socialmente este individuo, transpondo-se para o contexto eclesiástico.
A automatização nas igrejas é quase orweliana. Critica-se a vã repetição do Pai Nosso mas reescrevem-se "pais nossos" maquilhados de improvisação. O léxico é reduzido. Parece que pretendemos agradar mais um critério do que a Deus. Onde estão as dúvidas, as fraquezas, as perguntas que fazem doer e os salmos que fazem pensar? Fé não é fezada nem um processo hipnótico. Refuto a ideia onde o Espírito entra em nós para fechar os sentidos, calar o intelecto e aceitar as coisas sem pendências; defendo antes que nos capacita a reflectir. Fé não é regressão e por muito que goste de Hebreus 11:1, Fé não é uma definição.
Estou muito longe de ser negativista e considero a igreja uma bênção, mas temo por mim. Temo pelo que dou e pelo que exijo à congregação que é noiva de Cristo. Temo pela insipiência do meu sal e pela frouxidão da minha luz. Temo que a oração pelo crescimento só se refira a cabeças, a lotação.
Precisamos estar todos conscientes da mediocridade para a podermos desarraigar. Não vamos escondê-la atrás do sistema de som excepcional ou do projector multimédia que nos legitimam a mesmice "criteriosa". O espaço físico da igreja nunca serviu para elevar a substancialidade de tudo o que lá é discutido ou beatificar as normas que são humanamente proferidas. Devemos aceitar as coisas decretadas pelo Espírito e não tudo o que nos dizem os crentes. Afinal, mediocridade nem sequer tem onze letras.
Samuel Úria

[Sem título]
Será exagerado dizer que fiquei surpreendido com a notícia. Afinal de contas, trata-se basicamente da mesma razão que mantém, por exemplo, o telejornal da TVI no top das audiências televisivas. Mas a verdade é que não consegui evitar alguma indignação.
Segundo uma sondagem da Terra-Lycos, durante a semana passada a quantidade de buscas realizadas na Internet para ver a decapitação do norte-americano Nick Berg às mãos de terroristas iraquianos foi muito superior às destinadas a encontrar sites pornográficos. Recorde-se que estes sites são, usualmente, os mais visitados de toda a rede.
Já há muito que não alimento ilusões quanto à verdadeira natureza humana. E por isso não julgo que a popularidade dos autos-de-fé da Inquisição como forma de divertimento tenha tido origem na rudeza, na falta de cultura, no fanatismo religioso, ou na miséria que era comum a muitos portugueses da época. A morte como espectáculo tem uma longa tradição histórica. Lembremos apenas os circos romanos. Hoje, em pleno século XXI, pessoas com um nível de educação, de conforto, de acesso à informação, como nunca antes a Humanidade conheceu, não fogem à regra. Sob uma capa social diferente mantêm a mesma natureza que os impele à contemplação (não quero ir mais longe) da decapitação de outro ser humano. Paradoxalmente, o progresso, parte fundamental dessa nova capa social que afirma o desejo de um mundo mais digno e fraterno para todos, fornece também a tecnologia necessária para que as raízes do passado não só permaneçam, como se tornem cada vez mais acessíveis. No caso específico, a Internet, que deixa a satisfação da mórbida curiosidade apenas à distância de um clic. É caso para dizer que alimentamos com as melhores iguarias o monstro que afirmamos querer destruir.
Esta contradição, própria de um Homem imperfeito aspirando à liberdade, é um grande desafio para os cristãos de hoje.
Por um lado, pela necessidade de denúncia. De afirmação clara do erro. A "normalização" do pecado, quer pela facilidade de acesso, quer pela quantidade de oferta, faz parte de uma lógica maligna. De um percurso degrau a degrau. A pornografia, depois de constituída "normal", cede lugar ao "espectáculo" da morte. E o processo apresta-se a recomeçar. Mas "toda a gente faz" é um argumento com tão pouca consistência bíblica que não pode permitir ao cristão ficar calado.
Por outro lado, a ideia de resistência (Tiago 4:7) ganha uma nova dimensão. O comando da televisão e o teclado e o rato do computador tornam-se perigosos campos de batalha. Com ou sem uma ética específica para a Net e para a televisão, importa reconhecer que é também nestes espaços que vivemos a nossa fé. O Cristianismo nunca é virtual.
Pedro Leal

Olha que te cai o dentinho!
Um homem morre e vai para o céu. Lá é recebido pelo habitual São Pedro que lhe dá o habitual tour de boas-vindas. Logo, o recém chegado repara num velho amigo que tem agarrado à perna esquerda um exemplar da raça humana deveras feio e sujo. "O que é aquilo?" pergunta ao São Pedro, sem conseguir controlar o seu espanto diante do horror da cena. "Ah", diz São Pedro, "o seu amigo portou-se bastante mal lá na terra, e este é o seu castigo". Mais à frente o homem vê outro amigo, e agarrado a ele outra pessoa ainda mais feia, sebenta e porca. "Bem, o Manuel deve-se ter portado mesmo mal!" São Pedro assentiu. A lógica parecia que quanto mais pecaminosa a pessoa mais hedionda e suja era a criatura humana agarrada à laia de apêndice. Um pouco mais à frente o homem reconhece o Ferro Rodrigues, e agarrado a ele ... a Fernanda Serrano. "Puxa, o Ferro Rodrigues portou-se bem! Certo!" "Não, não" responde São Pedro. "É ao contrário, a Fernanda Serrano é que se portou muito, muito mal!"
Eu acho esta história deliciosa. Mais, acho este tipo de humor corrosivo um bálsamo. É uma forma dos crentes darem largas à sua irritação com certas figuras ridículas, sem as ofender. Porque afinal não podemos dizer mal do próximo, não é! Sou capaz de pensar numa ou duas pessoas das Igrejas que gostaria de pôr no lugar do Ferro, mas a hipocrisia reinante impede-me. Resta-me arredá-las para o reino do humor abstracto.
Mas será que o humor tem lugar na Igreja? Penso que sim.
1 - Há "graça" na Igreja?
Cristo nasce entre nós cheio de "graça" e verdade. Não podemos fugir ao duplo sentido na nossa língua dessa palavra graça. Vi um postal de Natal há algum tempo que achei interessante: José e Maria na manjedoura debaixo da estrela. José para Maria: "Pára de refilar. O que é que esperavas num hotel de uma estrela".
Infelizmente, falta-nos na Igreja a graça de rirmos saudavelmente, e a dimensão da Graça que restaura. Somos ágeis na condenação, e peritos em mau-humor.
2 - Há humor na Igreja?
No seu livro "The Cosmic Vision and The Christian Faith" Conrad Hyers diz que "a fé sem riso conduz ao dogmatismo e à arrogância, e o riso sem fé leva ao cinismo". Concordo. A fé cristã, longe de negar o humor, recomenda o seu uso terapêutico para ajudar a enfrentar o desespero e a falta de sentido da vida. "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!" Ora, aí está uma afirmação de humor negro sobre a realidade. Não esquecer que "vaidade" significa oco, vão, sem fundamento. Os ingleses diriam: meaningless. Haja humor para confrontar as ironias e as absurdezas da vida.
Para terminar cá vai uma para provar que Deus tem sentido de humor também. É de cair o dentinho ó vós almas beatas e seráficas!
No outro dia eu disse para Deus: "É verdade que um minuto para Ti é como mil anos?" "Sim", respondeu Deus cauteloso. "E também é verdade que para Ti um euro é como se fossem 1 milhão de euros", continuei. "Sim", confirmou Deus. "Bem", disse eu para Deus, "dás-me por favor 1 milhão de euros?" E Deus respondeu: "Espera só 1 minuto!"
Samuel Nunes

A começar nos pés
Nos meus tempos da Faculdade um jovenzito muito empertigado na sua presunção de rebeldia metia-se comigo a propósito da fé. Questionava-me maliciosamente como conseguia conjugar a audição dos Sex Pistols com a leitura das Escrituras. Lembro-me que, tentando permanecer no domínio dos códigos sociais apropriados, tentei explicar-lhe que só uma profunda ignorância sobre a Bíblia permitiria associá-la a uma colectânea de pensamentos positivos. Ou seja, quem dera ao pobre Johnny Rotten almejar à mesma implacável descrição da humanidade que o Bom Livro comunica. Os punks já exibiam os alfinetes de dama. Em comparação com o Evangelho faltava-lhes precisamente as fraldas.
Não vale a pena chorar sobre a iliteracia do povo. Nem repisar que os portugueses conseguem inaugurar novos estádios de ignorância sobre a religião. Não nos consolam as elites nem os da cultura. Parece uma espécie de maldição divina. Que teremos nós feito no passado para que Deus nos castigasse com semelhante inépcia? Pergunta para ser respondida na eternidade, creio.
Lutero meditando sobre a oração do Pai Nosso escreve: "quem pensaria que esta oração havia de respeitar e pôr em causa tanta gente?". Por isso não faz sentido o crente sentir-se orgulhoso - ele mais que ninguém está desprotegido. Nu perante Deus, lembrava Kierkegaard. A fé não é mérito, é por vezes uma incómoda sensação de auditoria, para usar termos feios mas competentes.
Não interessa afirmar as virtudes da nossa crença pela sua dificuldade. Esta pode ser uma tendência bem natural ao conservadorimo teológico. Não há contentamento ao entender os contornos da nossa condenação. Ninguém deve pregar o inferno com alegria. Permito-me um atalho. Se há perversidade na qual os evangélicos são culturalmente instruídos é uma espécie de júbilo recalcado no anúncio do tormento eterno. Não faz sentido e é tudo menos cristão.
Vale a pena lembrar os Salmos. "Lâmpada para os meus pés, luz para o meu caminho". As Escrituras começam ao nível rasteiro do tapete para terminar na ardente convicção filosófica. Nessa distância cabem as dores do mundo, o alívio dos oprimidos e as nódoas na toalha de mesa do casamento. Não conheço livro igual.
Tiago de Oliveira Cavaco

sexta-feira, maio 14, 2004

Do editor
O número 10 d'Os Animais Evangélicos vai desde artigos semi-académicos a instrumentistas de sopro. A teologia anda algures por aqui.
TOC


O Duplo Sogro - Os amores de Jacob.
Feio!
Esaú é dos personagens mais feios que a Bíblia retrata. Tanta estupidez e tanto pêlo juntos não nos criam uma imagem agradável.
Em laivos de insegurança espiritual (toda ela palerma) na minha meninice, entretinha-me não poucas vezes a tentar conjugar aquilo que a Ciência desmentira na religião. A meio das explicações disparatadas havia uma que não confesso com orgulho, pois para mim Esaú era, não o elo perdido entre humanos e macacos, mas ele próprio o ascendente de todas as figuras simiescas, peludas e estúpidas, que observava no livro de História do 7º ano. Fazia todo o sentido já que o tal não deixava de ser habitante primitivo de um Mundo jovem.
Paremos com isto. Ridicularizar-me com estas memórias não leva a lado algum (a não ser às contorções e ao apertar de estômago pela vergonha de mim mesmo) por isso volto ao ridicularizar de Esaú, um dos personagens mais feios que a Bíblia retrata. Com tanto pelo não podia ser bonito; com tão pouco tino não podia ter grande postura, era irremediavelmente feio. Até a acentuada afeição pela caça nos reporta a uma imagem de rudeza, aspereza, fragosidade.
É sabido, Esaú deixou-se embair pelo irmão Jacob e vendeu a primogenitura por um prato de lentilhas. A "primogenitura" não deixava de ser, naquele tempo, um conceito abstracto. Para todos os efeitos as nossas posses hoje também não passam de números informáticos abstractos que no Multibanco materializamos em dinheiro. A maquia da primogenitura na época de Esaú era inestimável; se houvesse uma lista da "Forbes" dessa altura seria para retratar os primogénitos descendentes de Abraão. Quanto às lentilhas, penso que teriam o mesmo valor de agora e não me vou pôr a brincar com inflações. Feio e muito burro, este Esaú.
É sabido, Jacob voltou a surripiar a Esaú mais um conceito abstracto de valor incalculável. Noutro episódio gastronómico, o matreiro Jacob vestiu-se com peles de animais para se fazer passar pelo piloso irmão (que feio deveria ser) aos olhos muito desgastados de Isaac, pai dos complicados gémeos. Com esta mascarada o mais novo retirou a Bênção que o pai prometera ao grotesco mais velho.
É sabido, o barbudo caçador jurou morte ao irmão. O segundo logro tinha sido demasiado. Sobre Jacob cairia a vingança do imbecil indecoroso. Não fosse a mãe de ambos, afecta ao mais novo, ter ouvido a inflamada jura e alertado o seu dilecto, talvez a morte tivesse mesmo assombrado aquela casa nesse dia.
É sabida muita coisa entretanto, mas de Jacob. A sua fuga , a sua inevitável regeneração e as peripécias noutro lado, bem longe. Quando se vê obrigado a retornar à terra dos pais o medo consome-o. Teme a vingança fraterna. Apressa-se a enviar presentes ao feio do Esaú para escapar a um sangrento destino que se afigurava incontornável.
O capítulo 33 de Génesis é, para mim, uma das mais comoventes passagens de toda a Bíblia. Quase me apetece transcrevê-lo para embelezar a irremediável fealdade do meu texto. Não o farei e passo a uma curta descrição: Jacob vê aproximar-se Esaú que traz consigo 400 homens. Teme a chacina e faz recuar os seus filhos e mulher na comitiva que com ele viaja; espera que sejam poupados. Ele próprio se adianta e, prostrado no chão, curva-se 7 vezes até que Esaú chega. O "feio estúpido" corre e lança-se implacavelmente ao pescoço do irmão para... o abraçar. E beijar. E chorar. Choraram ambos.
No tocante diálogo que se segue, Jacob olha para o gémeo e esta pequena expressão que lhe diz não evito transcrever: "...porquanto tenho visto o teu rosto como se tivesse visto o rosto de Deus". Esaú é dos personagens mais bonitos que a Bíblia retrata.
Samuel Úria

[Sem título]
Muitos cristãos dos primeiros séculos caminharam para a arena acusados de ateísmo. Tal situação pode parecer absurda para nós, que vivemos num contexto social influenciado pelo Cristianismo. De facto, a evocação de Deus está presente a cada passo dos ensinos de Jesus e da pregação dos Apóstolos. Mais: o próprio Cristo assumiu um estatuto divino perante os seus seguidores. Como podem então tantos homens e mulheres terem sido conduzidos ao suplício em nome de uma doutrina, o ateísmo, que visivelmente não abraçavam?
A questão não tem tanto a ver com a dúvida ou negação da existência divina, mas sobretudo com a sua pluralidade. Os primeiros cristãos negavam-se a reconhecer qualquer outro deus, incluindo o imperador. Eram radicalmente exclusivistas. E essa posição, num mundo dominado pelo politeísmo, abria todas as portas aos problemas e às incompreensões. Mas, apesar da intransigência, eles não desistiam de tentar esclarecer quem os perseguia (como, por exemplo, Atenágoras, na "Súplica pelos cristãos"). No entanto, assumindo até às últimas consequências a sua fidelidade ao Deus único, para eles importava, acima de tudo, limpar qualquer dúvida quanto à singularidade do Ser que adoravam.
Hoje, quase vinte séculos passados, o exemplo desses pioneiros continua actual. É certo que em Portugal não corremos o risco de tortura ou morte por afirmar que só há um Deus e que o único caminho para Ele se chama Jesus Cristo. Permanece, no entanto, a conotação subversiva. O discurso da tolerância e do ecumenismo, baseado na premissa de que todas as religiões possuem um pedaço da verdade divina, reage mal, como reagia o politeísmo do império, à mensagem da exclusividade. Podemos asseverar o nosso amor à liberdade de consciência e o respeito pela experiência e tradição de outros povos e culturas. De pouco vale. Os rótulos colam-se depressa aos que não vão na corrente. Antes seríamos "ateus", agora somos "fundamentalistas" e "intolerantes".
O Evangelho sempre foi incómodo. Para quem o ouve e para quem o vive e prega. Tal como aqueles cristãos perseguidos, os cristãos de hoje são convocados para a fidelidade. A mensagem é importante demais para que possa ser negociada, obliterada ou transformada em figura de estilo. Só há um Deus, e Jesus Cristo constitui o único caminho até Ele. Tudo o que ensombre esta clareza não vale a pena.
Pedro Leal

O encontro com o infernal saxofonista
Quis a Providência que eu crescesse a ouvir demasiado rock'n'roll. Saiu um rapazinho com vagas pretensões intelectuais mas com um indomável e semi-pecaminoso apetite para ser estrela musical. Parece que nem a adolescência, nem a paternidade foram tutoria eficaz para refrear o impulso carnal. E quando se encontram mais dois ou três indivíduos igualmente pouco espirituais o resultado é ter uma banda chamada Os Ninivitas.
Na mistura de cântico sacro com espírito profano o resultado é uma coisa pouco conforme os padrões tradicionais daquilo a que se convencionou chamar música evangélica. E como nem sempre escolhemos bem as companhias, lá acabaram um dia destes Os Ninivitas a tocar num evento para jovens baptistas.
Quis a Providência que eu tivesse crescido num lar em que o pecado da simpatia nunca foi devidamente combatido. Resulta que no fim da actuação daquela jornada fosse cumprimentar afavelmente um saxofonista brasileiro que tocava com precisão e profissionalismo. Posteriormente soube que aquela alma caridosa era um músico de carreira e que estava agora a cruzar a Europa para ganhar almas para Cristo. O ouvir de tão sublime missão deveria ter sido o suficiente para mim para pôr um termo àquela conversa e evitar semelhante companhia. Mas sucumbi. Aquele homem do sopro aproveitou um embalo para partilhar a sua perspectiva estética sobre a minha banda. "Interessante é o termo apropriado", disse. E com um sorriso naquela beata face afirmou que se havia divertido muito durante a nossa actuação.
Quando um músico evangélico brasileiro diz que considera algo "interessante" ele quer na verdade dizer que lhe falta substrato espiritual, devoção na forma, rezas antes de entrar em palco e uma mão a apontar para o céu quando se ouve um aplauso. Sei-o porque já gramei muitos músicos evangélicos brasileiros e porque ser um baptista português significa descobrir que alguém assinou por nós um pacto macabro de que até ao caixão vamos ter de levar com muitas instruções não-encomendadas dos nossos irmãos trans-atlânticos. Terá sido uma espécie de aposta entre Deus e o diabo? Tipo Job? "De certeza que os crentes portugueses não aguentarão firmes na fé se tiverem de aturar missionários brasileiros a vida inteira ..." arriscou Lucifer. O Senhor parece ter aceite o desafio.
Recebemos mal os crentes da ex-Vera Cruz nas nossas igrejas. Oferecemos-lhe o espaço inapropriado. Demasiado grande e de mão beijada. Fomos educados nesta colonização eclesiástica, bem sei. Muito do que somos devemos ao esforço de países como o Brasil e Estados Unidos. Mas já é altura de arranjar um emprego e sair de casa dos pais.
Temos litugias importadas, maneirismos contrabandeados, pregadores estrangeirados e orações com sotaque. Nesta ausência de auto-estima basta o encadeamento oleado de três frases movidas a jargão religioso para darmos a camisa e o púlpito ao visitante tropical. Não lhes fazemos bem a eles nem a nós.
Quis a Providência que naquele encontro com o saxofonista eu não usasse da sinceridade devida. Afinal eu creio na pedagogia das conveniências sociais. A actuação tecnicamente irrepreensível daquele instrumentista lembrava os filmes eróticos que se fazem sempre acompanhar de interlúdios de saxofone para as cenas escaldantes. Eu deveria ter partilhado essa palavra com aquele meu irmão.
Tiago de Oliveira Cavaco

"Amas-me!?"
O filme "Um Violino no Telhado" (Fidller on The Roof - seria melhor traduzido violinista no telhado), tem uma cena amorosa entre o patriarca da família e a sua esposa. Pergunta ele a certa altura à mulher: "Amas-me?" "Que pergunta parva" - diz ela - "estás com indigestão". Ele insiste: "Éramos tímidos quando casámos, não falávamos muito!", e ela desabafa: "25 anos a criar-lhe os filhos, a lavar-lhe a roupa, a fazer-lhe a comida e a limpar a casa, e agora ele pergunta-me se o amo!" "Bom, então amas-me?" - pergunta ele. "Suponho que sim!" - exclama ela. "Ainda bem!" - suspira ele.
Cristo também faz essa pergunta crucial a Pedro, em João 21: "Amas-me!?". Crucial em três áreas para Pedro, e para mim.
1 - Fisicamente, Cristo faz a pergunta à beira dum churrasco na praia. Fora também perto dum fogo em casa de Caifás que Pedro sentira o seu mundo desabar. O fogo da traição. E eu penso nos "fogos" que ateei no meu percurso de vida, e nas vezes que traí o meu Mestre!
2 - Emocionalmente, a pergunta mexia com Pedro. Pois já provara que o seu carácter tinha sombras e era volúvel. Para mais, Cristo esfregava sal na ferida ao tratá-lo por "filho de Jonas", que é como quem diz "filho de pomba" - instável, frágil e assustadiço. Como ele desejava ser "petra" de sentimentos! Firme como a rocha. E eu penso nas vezes que tenho sido "pomba", e no desejo não concretizado de ser "petra".
3 - Espiritualmente, Pedro vivia num pesadelo, povoado por galos a cantar, e galináceos a debicarem na sua cabeça ... a meio da noite acordava alagado em suor ... cometi o pecado imperdoável! Entretanto, Cristo restaura Pedro. Primeiro dá-lhe a garantia de que o perdoa, e assim, com a sua confiança de novo energizada, Pedro recebe uma missão: "Apascenta as minhas ovelhas". E há nesta frase todo o perdão que viaja da negação para a afirmação. E eu penso nos momentos em que Cristo serenamente me perdoa levando-me ao colo para que a minha atitude espiritual seja de lúcida afirmação.
Samuel Nunes


Ciência e a Afirmação da Fé
Certo dia um cientista do Reino Unido fez no seu laboratório uma experiência, uma síntese de um produto químico na qual conseguiu um rendimento de 90%. Anos mais tarde na África do Sul, este mesmo cientista seguiu exactamente a mesma técnica da primeira síntese e conseguiu um rendimento de apenas 65%. O cientista não conseguia perceber a causa deste decréscimo no rendimento da reacção, pois tinha utilizado exactamente os mesmos reagentes, o mesmo material, as mesmas condições, enfim, tudo. Na sequência deste resultado, o cientista não assumiu que as leis químicas envolvidas tinham mudado, nem que a mesma técnica tinha agora passado a produzir resultados diferentes. Antes, assumiu que embora não percebesse o quê, alguma coisa ele teria feito de diferente. Para isto, ele usou o que podemos chamar de fé.
A crença na reproductibilidade química é um acto de fé, na medida em que a ciência assume que todas as leis se mantêm constantes no espaço e no tempo e não tem bases para isso além do facto de até agora, sempre ter sido assim. Estas são as mesmas bases que eu tenho, por exemplo para acreditar na fidelidade de Deus ? até agora Deus sempre tem sido fiel.
Mais tarde, o cientista veio a descobrir que um dos reagentes tinha sido adulterado pela humidade.
Como podemos ver por este exemplo, a fé e a ciência não são inimigos figadais. A ciência tem muito de fé, e o pensamento científico por sua vez, chega a ter um papel muito importante na apologética e na abordagem cristã das escrituras. A minha formação científica foi preponderante a determinado ponto da minha conversão e entendimento do evangelho.
Contudo, a ciência tem um campo de acção definido e limitado. C. S. Lewis ilustra esta realidade pedindo-nos que imaginemos um cientista que pensa que a sua esposa pode estar a ser-lhe infiel. No seu laboratório, perante uma questão ou problema, como bom cientista que é, ele formula uma hipótese, e de seguida, cria todas as condições para experimentalmente provar que a sua hipótese se mantém sem ser contrariada por nenhuma das experiências. Se tal se verificar, ele promove a sua hipótese ao estatuto de teoria, e é essa a sua conclusão. Decerto que perante a hipótese da infidelidade da sua esposa, o cientista não iria criar todas as condições para que a sua hipótese se pudesse comprovar experimentalmente. Se o fizesse, estaria a ignorar toda uma série de considerações sobre a natureza humana que nesta situação seriam primordiais. O método científico poderia neste caso ter consequências desastrosas. Não era o método indicado para esta situação! Seria como utilizar um telefone para medir a radioactividade.
Temos de conseguir perceber qual é o domínio da ciência. Temos de conseguir perceber o que é que Deus nos diz através da sua palavra revelada que a ciência não diz.
Para ajudar na resposta a esta questão, vamos imaginar duas pessoas numa noite de verão passeando à beira-mar. Ambas se aperceberam de alguns fachos de luz no mar. Um deles era um cientista e o outro era um escuteiro marítimo. O cientista descreveu o que acontecera como a visão de um filamento de Tungsténio aquecido, fechado numa cápsula de sílica emitindo um padrão regular de flashes de radiação no comprimento de onda do visível a uma intensidade de aproximadamente 2500 lúmens , à distância de 850 metros da costa. O escuteiro descreveu o acontecido como a sinalização luminosa de um SOS para a guarda costeira que prontamente enviou socorro.
Qual deles deu a descrição mais correcta do que acontecera? ? Nenhum ! Ambos deram uma descrição correcta, mas em termos bem diferentes!
Este exemplo do cientista e teólogo Ernest Lucas ajuda-nos a perceber o género de questões a que a ciência responde. A ciência diz-nos como o sinal luminoso foi produzido, mas não nos diz porquê. Da mesma maneira, a ciência pode tentar dar sugestões acerca de como o homem foi criado, mas nunca nos dirá o porquê de o homem ter sido criado.
Existem muitas questões que ultrapassam claramente o domínio da ciência, como por exemplo as questões éticas. De onde tiramos os valores que regem a ciência ? O homem tem originado muitos desastres por não ter um sistema de valores capaz de controlar o uso da ciência. Pensemos por exemplo na bomba atómica e na sua utilização como consequência de um notável progresso científico, mas ao mesmo tempo de uma terrível inconsciência moral.
Foi por esta razão que a confiança exacerbada na capacidade humana, e no engenho científico (como garantia de um futuro risonho para a humanidade) apregoada pelo racionalismo positivista do início do século, foi destruída pela tragédia da 1ª Grande Guerra. Ficou claro que a ciência não tinha a resposta para tudo.
Contudo, não foi apenas no âmbito da ética que os ideais deste racionalismo se mostraram incompletos. A deficiência que se verificava no tocante ao encarar da dimensão espiritual e mais subjectiva do homem, a pouco e pouco se tornou notória e mais relevante. Assim, confirmando um pouco a "hegeliana" visão dialéctica da história, a tese gerou uma antítese, e depressa se aplicou o subjectivismo e o pluralismo sugeridos pelos desconstrutivistas literários à totalidade da realidade humana, preenchendo assim com uma nova dimensão o vazio deixado por muitas décadas de "ditadura racionalista".
Hoje em dia a realidade das limitações do positivismo racionalista está mais presente procurando-se agora respostas em todo o tipo de transcendentalismo.
O mundo científico está também desperto para esta realidade. Stephen Hawking, um dos mais proeminentes físicos do nosso tempo, dá também sinais desta consciência, quando no seu livro "Uma Breve História do Tempo" lança a questão: "O que é que expira fogo para as equações e faz com que exista um universo para elas descreverem?".
C.S. Lewis deixou-nos uma frase que aponta o caminho para a resposta a esta questão : "O que nunca podemos fazer é excluir a hipótese de o sobrenatural ser a única explicação possível". E é apenas isto que o cristão faz ! Assume que o homem foi criado porque Deus o quis !
A Bíblia ensina-nos que Deus criou o mundo com um propósito e ensina-nos também que é Deus quem mantém o universo a funcionar: a afirmação da Imanência de Deus .
Ao olharmos para uma flor, podemos perceber ali, Deus a suster e a manter a natureza tal como a conhecemos. Como Jesus afirmou, as próprias aves do céu são sustentadas por Deus. Como é que Deus sustenta é uma questão para a ciência resolver...
Tiago Branco

segunda-feira, maio 10, 2004

Do editor
Uma licença de paternidade atrasou o número 18 d'Os Animais Evangélicos. Mas não o impediu. Mais curto que é costume mas cá está. Três artigos e um desenho. Chega.
TOC


A zebra perdida.

A mulher grávida na sessão de igreja
Anda por aí uma gente em orações inflamadas. Clamam por uma igreja verdadeira, sem regras e castrações, cheia de pureza e sem hipocrisias. Com hálitos asseados revelam que não estamos a conseguir comunicar com o mundo. Ulceram-se com liturgias vazias, não encaixam nas pesadas agendas dominicais.
A minha esposa começou a perder líquido amniótico numa assembleia administrativa da Igreja Baptista de Moscavide. A minha filha nascia pouco mais de um dia depois daquelas penosas três horas de parlamentação congregacional. Seria muito melhor passá-las a disfrutar o sol de Domingo.
Quando ouço alguém a escolher a sua fileira no espírito da lei sei imediatamente que estou perante um adversário. Sou uma pessoa que opta sempre pela letra da lei. Não pestanejo. Conheço o meu lado das trincheiras.
São muitas as almas ofendidas pela actual ausência de espiritualidade da igreja. O evangelho não combina com instituições humanas, e por aí fora. Topo esses bonecos de peluche tosquiados à distância. Têm sempre uma amplitude cardiológica superior à minha e um banho tomado há menos tempo.
É cedo falar em educação dos meus filhos. E nada recomendável sequer. Mas espero incutir-lhes muito legalismo. Apego a regras. Desprezo por visões e utopias.
Não existem boas intenções naqueles que julgam saber aquilo que o mundo precisa. Não há bons ventos a sair de cabeças arrebatadas. Dava-me jeito, parece-me, uma reeducação para a mesquinhez. Essa será uma boa reforma para a igreja. Dar mais atenção à sua matéria-prima. À deplorável alma humana.
Acabo com fundamentalismo. Pessoas que fazem fretes são sempre melhores do que pessoas que não fazem fretes. Gente com pachorra para aquilo que não a merece é sempre gente melhor do que gente sem pachorra para aquilo que não a merece. Eu e a minha mulher demos um grande exemplo à nossa filha. Porque o parto foi muito complicado. E as dores começaram na assembleia administrativa da Igreja Baptista de Moscavide.
Tiago de Oliveira Cavaco

Ler nas espinhas
O almoço foi peixe. Qual feiticeiro de tribo africana, li nos restos do prato, por entre espinhas e azeite, a minha triste sina.
Não foi a primeira vez que encarei, infectado de alguma vergonha, a falta de decoro na louça entregada para lavar. Dentro da cozinha onde almoço com os meus colegas apresso-me várias vezes a despejar o prato no lixo antes que o opróbrio me tome. Desconfio nunca vir a ter qualquer hipótese de corrigir o desmazelo nas refeições. Por muito que me concentre no acto de comer, cortar com faca, picar com garfo, mastigar, sei lá que mais, sobre os meus pratos ficam sempre vestígios, muito arroz espalhado, migalhas de qualquer coisa, restos de peixe nas espinhas, coxas de frango mal rapadas. No sobejar feio do prato em que almocei li a minha triste sina: hoje iria escrever sobre isto nos Animais Evangélicos.
Às vezes refugio-me na etiqueta, confortando-me com a ideia de um prato limpo ser pífio sinal de sofreguidão. A estupidez humana não faz por menos: em vez de disfarçar os meus defeitos com pequenas desculpas despistantes, tenho logo que chamar atenção para eles declarando-os como virtudes. Faz-me lembrar quando, era eu criança, a minha mãe comprou um chamado "tapa-buracos" para disfarçar calças que rompi. Tenho presente esse remendo com o símbolo da Ferrari que, enquanto ostentava orgulhosamente nos joelhos, revelava gritantemente que andava de calças rotas. A ironia recuperada é por recordar-me do buraco no joelho, tão minúsculo que ninguém notaria, não fosse a absurda qualidade com que mascarei o defeito.
É impossível dar-se o primeiro passo para corrigir uma imperfeição se esta não for assumida. Gastamos muito latim a beatificar os nossos defeitos e nenhum a confessá-los. O pior é que nos enlodamos na oratória e já não conseguimos escapar à palmatória.
Devia evitar falar no plural. Se quero experimentar um exercício de humildade não devo generalizar no apontar das falhas. Eu é que deixo o prato sujo. Eu é que introduzo a conversa com um "pecado menor" nas refeições, para suavizar a confissão do mesmo desleixo noutras acções.
Sou desmazelado e, a braços com esta confissão, não acho muito correcto terminar a frase usando ponto final? O fardo acumula-se quando já há pessoas a contar com o meu laxismo, a reconhecerem-no como parte estética integrante da minha essência. Por tanto promover a incúria já tenho dificuldade em diferençar quando é que é uma postura propositada ou o tal defeito mascarado. Postura propositada? Bah, boa tentativa!
Não sei de nenhum evangélico que desconheça Josué 1:09. "Esforça-te (...) porque o teu Deus é contigo" tem leitura óbvia e teor suficiente para me ensinar uma lição. Esforçar-me-ei porque conto com a ajuda de Deus. Vou agora tentar aliviar o meu sufoco com a difamada generalização: quantos de nós é que já se atreveram a mudar a ordem ao versículo e a entendê-lo como "O teu Deus é contigo, por isso vê lá se te esforças!"? Poucos. Vamos lá limpar esse prato.
Samuel Úria

3 personagens
Por esta altura no calendário litúrgico da maior parte das Igrejas Evangélicas (sim há Igrejas Evangélicas com uma liturgia ancestral), saltam à retina três nomes que povoam os Evangelhos. Maria Madalena no sepulcro, a chorar; Tomé no quarto a duvidar e Pedro na praia a cear.
Maria Madalena traz-nos toda a dimensão da perda, mas também da mudança emocional radical que se operou nela - "Rabbonni". Tomé ensina-nos que a dúvida pode levar-nos a uma fé mais convicta - "Senhor meu e Deus meu". E Pedro ensina-nos que a restauração para o Serviço do Mestre é possível - "tu sabes que eu te amo!"
A ninguém Cristo trata com rispidez: à mulher chorosa chama pelo nome (carregado da pronúncia Aramaica) - "Maria"; ao incrédulo céptico-urbano desafia calmamente - "põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos"; e ao instável-depressivo recomenda - "apascenta as minhas ovelhas". Cristo a todos restaura. Cristo a todos encoraja.
E, como é urgente termos encorajadores. O verdadeiro encorajador é aquele que trata das pessoas primeiro, e só depois das circunstâncias. É aquele que alerta: "mão no arado, e nada de olhar para trás". É aquele que exclama: "olhos em Cristo, autor e consumador da nossa fé". Por causa da trilogia maldita é difícil ser discípulo de Cristo. (mente quem diz o contrário!) Há o pecado dentro de nós (natureza falida); há a pressão à nossa volta (cultura corrupta); e há o inimigo-luz (o pequeno deus-sombra). Ser seguidor de Cristo é nadar contra a maré e ser resgatador da sociedade. Por isso é necessário alguém exercer o ministério do encorajamento. Os Barnabés (Actos 4:36)! Sem as fraquezas de Maria, as ambiguidades de Tomé e os defeitos de carácter de Pedro, os Evangelhos seriam menos genuínos e a nossa experiência Cristã ficaria mais pobre. Eles encorajam-me...
Samuel Nunes

sexta-feira, abril 30, 2004

Do Editor
O número 17 d'Os Animais Evangélicos traz:
- navios e eunucos
- Hollywood e o amor
- pregadores e convertidos
- sermões contra a luxúria
- cães em animada conversa
- e o Johnny Cash a saltar do comboio.
A partir desta semana nem só da sexta-feira viverá o homem. Todas as
quartas-feiras sai a Terra da Alegria. Seis boas razões católicas. This
could be the beginning of a beautiful friendship
.
TOC


"I'm alright now. I was riding on the devil's train, but I got off somehow", Johnny Cash.

[Sem título]
O apóstolo Paulo era um viajante e não um caixeiro-viajante. Não percorria terras a promover qualquer miraculosa Água da Vida. “Promoção” nunca faria jus aos actos do apóstolo. Disto deviam consciencializar-se determinados comerciantes ao citar Paulo em pregões decorados.
Teoricamente, platonicamente, toda a gente sabe que o Evangelho não é um produto que se comercialize. Estrategicamente, pragmaticamente, são muito poucos a absterem-se do reclamo espiritualóide. Os convertidos sentem uma dívida de gratidão que os constrange a ser conversores. Sendo detentores do maravilhoso fim os meios são bênção compartilhada. Não há maquiavelismos, conceito ingrato. Não há nas suas (nossas) cabeças.
Pouco me escandaliza a noção estratégica da evangelização. O Espírito certamente iluminará os contritos e humildes mensageiros preparados. A Grande Comissão que Cristo nos encomendou está ao alcance dos atentos e devotos, mas por que espírito vão ser esses iluminados ao aperaltarem-se para o ofício de “delegados de propaganda religiosa”?
O “Ide” é uma ordem clara, o irmos é uma tarefa óbvia. O “Ide” é uma ordem divina, o irmos é demasiado humano. Das recomendações de Jesus não deveriam resultar tarefeiros desonestos, como se fosse possível não corromper uma acção que depende de homens e mulheres. A solução é axiomática: fazê-la depender de Deus.
Ao tratarmos a mensagem divina apenas como um produto essencial ao bem comum estamos a afogarmo-nos em altruísmo corrompido. As boas intenções nunca foram o altar sacrificial que purifica as nossas estratégias. Maquiavélicos nunca! - no senso comum isso é sinónimo de malévolos. É conceito ingrato mas ouso dispará-lo.
O vendedor não dúvida do seu produto. O crente explica o Evangelho como infalível; não importa se há aquela interrogação teológica que o assalta todas as noites, se não consegue dormir a pensar na vontade de Deus, se desconhece o poder da oração. Os problemas materiais são esquecidos e anulados para efeitos de diálogo. Na explanação da sua Fé veste uma capa de infalibilidade que ofusca o receptor. Ofusca-se a si próprio. A capa é escarlata.
O convite é a despirmo-nos e não a vestirmo-nos. A armadura que o Apóstolo Paulo nos convoca a colocar (Efésios 6) não cabe por cima desse fato imaginário com que nos mascaramos de vendedores. Se percorro a analogia, então será ao testemunhar que vamos estar mais vulneráveis. A tentação não nos induz apenas a fazer o mal, também nos leva a fazer o bem incorrectamente. Repito pouco me escandalizar a noção estratégica de evangelização; o problema muitas vezes não é trazer truques na manga, é trazer mangas.
Evitem dar-me ouvidos se entendem que rogo uma limitação das acções evangelísticas. Evitem prestar atenção se acham que só trago críticas e nenhuma solução. Dêem-me ouvidos e prestem-me atenção agora: há, sim, que manter a acção evangelístca; a solução é axiomática: fazê-la depender de Deus.
Samuel Úria

[Sem título]
Duas excepções emocionantes
Uma porção dos Evangelhos, trazida num momento particularmente frágil, e o abastado comerciante do século XII transformado num pregador despojado. Pretendendo imitar Cristo, Valdo doou então os seus bens aos pobres e mandou traduzir o Novo Testamento do latim para a língua vulgar. Tinha agora acesso, de forma clara, às palavras de Jesus e dos apóstolos. E foi com base nelas que ele e os seus seguidores saíram a pregar ao povo. A oposição não tardou (a confrontação com as Escrituras punha a nu os desvios da religião oficial). Mas os valdenses não cederam. A Palavra de Deus que os tinha transformado dava-lhes agora ânimo para resistir.
A conversão de Alexander Smith, amotinado do navio "Bounty", e último sobrevivente do grupo de foragidos que pretendeu fundar um "paraíso" nos Mares do Sul.
Depois de vários anos salpicados com homicídios, alcoolismo, traição e imoralidade, envolvendo os amotinados e os nativos trazidos do Taiti, a ilha de Pitcairn conheceu finalmente a paz, quando Smith descobriu uma Bíblia esquecida no fundo de um baú. O impacto desse encontro foi tão grande que abalou não só a sua existência mas também a de toda a comunidade. Quinze anos mais tarde, quando o primeiro navio inglês aportou à ilha, o relato que trouxe foi o de uma sociedade quase perfeita. Pessoas instruídas e honestas, conhecedoras do texto bíblico, vivendo harmoniosamente e em paz.
A regra trabalhosa
O eunuco e mordomo da rainha da Etiópia que, de regresso a casa, lia as Escrituras em voz alta, mas não as entendia. E Filipe caminhando ao seu encontro, movido pelo Espírito, metendo conversa, e explicando-lhe detalhadamente o que estava escrito. E então, só então, o eunuco, respondendo ao anúncio de Jesus, exclamou: "Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus".
Pedro Leal

Meias-Estórias
Somos seres relacionais. Desculpem lá começar assim com um dogma, mas o tema que hoje gostaria de partilhar convosco, não me deixa espaço para as discussão deste princípio. Aliás, a pertinência deste tema vem precisamente do facto de todos estarmos envolvidos em relações, e de as procurarmos, de uma maneira geral, com insistência. Por ser um tema tão actual e tão importante para nós, temos assistido nos últimos tempos a uma série de sucessos de bilheteira em filmes da main stream do cinema americano e europeu que abordam as relações amorosas, e que através das estórias que contam, pretendem expor, senão mesmo propor a afirmação de novos paradigmas relacionais. Filmes como Love Actually, Along Came Poly, Lost in Translation, ou Cold Mountain (do mesmo realizador de The English Patient), questionam, cada um da sua maneira, a necessidade e o sentido de conceitos como a fidelidade, casamento e família. No seu conjunto, expõem a fragilidade das relações, a inevitabilidade das separações, e a injustificabilidade da fidelidade, ao mesmo tempo que afirmam uma misteriosa e incontornável vontade própria das nossas emoções, sobre a qual não temos, nem é suposto tentarmos ter algum tipo de controlo. A ideia de que nos assuntos do coração não manda a razão vem fragilizar ainda mais as já à partida débeis aspirações a uma relação estável e duradoira. Sob o domínio das nossas emoções, já não faz sentido lutar por relações que começamos a considerar pobres, quando encontramos alguém mais bonito, que aparentemente nos realiza muito mais, com quem nos sentimos muito melhor, cuja imagem não foi desgastada por lutas travadas em comum, no fundo, alguém com quem tudo parece ser mais fácil. A paixão por essa nova pessoa e pelos renascidos prazeres que nos traz, parece inevitável e não demoramos a assumir e a abraçar esse sentimento. É o começo de um processo de separação emocional que torna admissível, justificável, e quase até desejável o adultério, o grande protagonista das telas que ao mesmo tempo retratam e instituem a realidade. A crise da fidelidade dita a crise do casamento (que no fundo é um contrato de fidelidade), e da família. Algumas relações, embora com cicatrizes profundas acabam por sobreviver, mas para os que aprendem a assumir à partida o carácter tentativo e efémero das suas relações, é apenas uma questão de tempo até à próxima seta cupidosa. As fracas expectativas e o egoísmo matam à partida qualquer esperança numa relação sólida. Experimentar, andar, tentar viver junto e ver no que dá são verbos muito mais prudentes. Mantemo-nos à defesa, porque não queremos sair magoados. Afinal, só vale a pena estar numa relação se esta for boa para nós, e mais vale estar só do que mal acompanhado. Estes são os novos paradigmas relacionais que se instituem e que proclamam a libertação de uma moral que se diz rígida e com cada vez menos adeptos. As libertações sabem sempre bem. É por isso que as estórias das telas nos tocam. Com um sentimento de realidade e de sofrimento, juntamo-nos aos personagens nas suas lutas, ansiamos com eles pela libertação das relações insatisfatórias e celebramos com eles as descobertas de novos amores. Mas nas telas as estórias param ali. Não vivem o suficiente para o desgaste, não experimentam as mesmas desilusões e nunca se transformam no que começaram por desprezar. Nestes argumentos, a cobiça de novas pessoas, a disponibilidade para novas relações e as soluções fáceis nunca chegam a fazer mais vítimas. São meios–argumentos.
Tiago Branco

[Sem título]
Sou daqueles que está longe de pensar que a televisão é apenas rádio com imagem, ou que a televisão é mais completa que a rádio precisamente por recorrer a uma componente da realidade tão importante quanto a da imagem. Pelo contrário, acho que são meios com características diferentes e até mesmo com públicos um tanto diferentes. Tenho mesmo tendência a apreciar mais o trabalho que se faz na rádio, precisamente por que a falta da imagem tem de ser obviada com o recurso a outro tipo de artefactos e habilidades. A publicidade é um dos campos em que se nota mais o quão engenhoso é o mundo da rádio. Há, sem dúvida, excelentes anúncios a circular que sabiamente substituem a ausente imagem.
Tudo isto para dizer que, como ouvinte relativamente assíduo da rádio portuguesa, fiquei há algum tempo chocado com um anúncio que surgiu propagandeando determinado serviço prestado pela conceituada marca automóvel Mercedes. Nada me move contra todos aqueles a quem a vida tem permitido comprar e sustentar um Mercedes, até por que muitos destes automóveis chegam do estrangeiro a preços relativamente módicos, tanto quanto sei. Seja como for, o que me chocou foi ouvir a determinado passo do anúncio uma criança a perguntar ao pai se quinhentos euros não era muito dinheiro, ao que o pai responde de forma despreocupada: “Não! Não é muito dinheiro”. Retirando todos os relativismos e ambiguidades possíveis em relação ao valor real do montante em causa, a verdade é que não é qualquer português que tem a referida quantia para pagar mensalmente em troco de um serviço que a marca oferece. É arrepiante a ligeireza com que muitas vezes se tratam estes assuntos, apercebendo-se ou não os seus autores que tais insinuações – seja num anúncio ou em qualquer outro contexto – é humilhante para milhões de portugueses para quem quinhentos euros é precisamente todo o salário que levam para casa ao fim do mês e para muitos outros um valor que desejariam um dia chegar a alcançar.
Num país em que existem centenas de milhares de desempregados, salários em atraso, pensões miseráveis, já para não falar daqueles que se podem dar ao luxo de dizer que não foram aumentados este ano – quer isso dizer que mantêm o seu emprego – este tipo de “brincadeiras de mau gosto” não deveriam tomar tal destaque. Não sou adepto da censura, nem acho que esta ou qualquer outra marca não tenha o direito de comunicar com os seus públicos da forma que acha mais eficaz. No entanto, não me é possível calar a indignação perante tais apelos a este tipo de luxos que passam por cima de tantas e tantas cabeças no nosso país.
É nestas ocasiões que consigo vislumbrar como Jesus foi tão diferente do status quo vigente, na sua passagem pela terra. Sem falsas hipocrisias ou discutíveis evangelhos sociais a verdade é que me interrogo se os cristãos estão efectivamente preocupados pelos desprezados da sociedade. E estes não são apenas as vítimas de racismo, de violência doméstica, os toxicodependentes, sem-abrigo ou marginais. São todas aquelas pessoas que se esforçam honestamente no seu dia a dia por conseguir levar para casa mais ou menos que quinhentos euros por mês, isso pouco interessa. Homens e mulheres que literalmente se matam a trabalhar para que os seus filhos e outros dependentes possam ter o mínimo de dignidade na vida. Depois queixamo-nos que em Portugal a família não dá apoio às crianças, adolescentes e jovens, queixamo-nos do abandono escolar, do trabalho infantil e de tantas outras maleitas de que o nosso país continua a sofrer. Evitando generalizações perigosas, arrisco dizer que certamente esses milhões de trabalhadores honestos nunca vão sequer ambicionar ter quinhentos euros por mês para pagar um serviço de um carro que nunca terão. Para eles quinhentos euros é muito dinheiro!
Timóteo Cavaco

Sexo: ética e estética
O pobre do Beckam tem andado atrapalhado com as mulheres. Elas surgem do todo o lado a dizer que tiveram um caso com ele. É uma fartura! A Vitória vai-se aguentando à bronca, exala perdão por todos os poros. O interessante nos comentários das "amantes" é a referência inevitável ao "desempenho sexual" do futebolista. Ou ele é "geneticamente abençoado", ou gosta de "ficar por cima", ou então "beija lindamente". Tudo comentários cor de rosa. (suspiro!)
Dito doutra forma: há uma preocupação clara pela estética, e um desprezo pela ética. Ninguém achou mal trair a Vitória. Ninguém falou na vergonha dum flirt com um homem casado. Ninguém abordou a dor que as notícias irão trazer à família Beckam (há filhos envolvidos, certo!) Mas, na verdade é banal, esta atitude social. É banal, mas está mal! Quando uma sociedade valoriza a estética em detrimento da ética, é o fim da picada. Vejam os Romanos, os Gregos, os Árabes, etc.
É urgente uma ética sexual. De estética estamos nós servidos. Os anúncios de TV; os carros com beldade em anexo; as Modas; as revistas Ego, Men's Health, Maxmen (desta gosto), com os conselhos imperdíveis de como atingir o ponto G da mulher, enquanto se mantém a pose e o perfume dum Metrosexual. OK! Temos estética. E a ética!?
Só dois pontos para começar:
1 - pensar que o sexo tem só a ver com o corpo é um erro. O verdadeiro habitat natural do sexo é a alma. Sem alma há apenas ritual sexual entre macho e fémea. Sem alma temos cio. Com alma há sexo no sentido profundo que Deus sempre quis: Sexo em que há encontro de corpos e osmose de almas. Para isso há que haver uma transcendência dos corpos, para que o encontro seja ao nível dos desejos, dos sonhos, dos ideais, dos maneirismos ... e porque não das fantasias. Pois falar de sexo é falar de fantasias. Se não houver esta ética do sexo, temos apenas massagem de corpos e ginástica de mentes. Se não houver ética de sexualidade nunca se concretizará a promessa de Génesis: "os dois serão uma só carne".
2 - pensar que o sexo tem só a ver com a alma é também um erro. Somo seres totais. O local onde revelamos mais a nossa esquizofrenia é na cama. Por isso, uma estruturação completa do ser será sempre a missão de qualquer crente. Precisamos agir como seres totais na cama. Temos alma e corpo, e no sexo estas duas esferas da personalidade fundem.-se mais profundamente. Os sentidos do tacto, do olfacto, da visão, do gosto e da audição estão em alerta máximo. Mas, serão estas nossas capacidades sensoriais apenas do reino físico? Ou meramente de ordem espiritual? Certamente que não. Eu "sinto" um por do sol com a visão e com a alma de poeta e artista; eu sorrio debaixo da chuva de verão com o olfacto que me traz a terra molhado aos sentidos, e com a alma plena de felicidade pela beleza da vida. Ora, a plenitude dos sentidos expressam-se como nunca quando se faz amor. É a alma em deleite, experimentando todo o potencial de ser alma. O genuíno prazer é sempre uma experiência de conjunto: alma e corpo. O cristão não é Platónico.
Resumindo: nem a mecânico do sexo, nem a beatificação sexual são alternativas para o cristão.
Samuel Nunes



Quatro patas e um bom coração

Por cada três ou quatro simples palavras que debito acodem-me à língua como mosquitos ao vinho punhados de palavras maliciosas e murmurantes”.

Cervantes coloca esta frase na boca de um cão. Numa noite dois canídeos são surpreendidos pelo inesperado dom da fala, que resolvem aproveitar num animado colóquio filosófico. Entre tantos detalhes narrativos que revelam nas suas memórias, os quadrúpedes reflectem sobretudo sobre as misérias humanas. Adequa-se pensar que quando as palavras dos homens já não são suficientes para a penitência, só os animais nos podem vir em auxílio. Para além da oratória espirituosa, os cachorros de Cervantes são humildes pecadores em contrição. A confissão da maledicência. Quatro patas e um bom coração.
Na reunião de oração de quinta-feira da Igreja Baptista de Moscavide, o pastor estimula os crentes à oração. Numa prece alongada, uma irmã descreve situações com pormenor e detalhe científico. Ao chegar ao fim, emociona-se. Quando diz “tu conheces tudo, Senhor” já a sua voz vacila evitando o choro. Contradição sublime. Enquanto fazia o ponto da situação espiritual alheia a irmã teve precisão técnica e eficácia lógica. Termos apropriados e discurso fluente. Abeirando-se daquilo que se julga serem as suas próprias angústias, encontrou na linguagem não uma ajuda mas um estorvo. Sem tradução simultânea deixou que fossem as lágrimas a interpretar apressadamente o que a língua não deixava pronunciar.
A importância de “dar testemunho” é incontornável na cultura protestante. O termo é batido e até as criancinhas em idade pré-escolar conhecem a expectativa que cai na sala de oração quando aquele irmão que andou na droga se levanta pela primeira vez para ir à frente falar sobre o seu encontro com Jesus. E se é certo que somos tímidos na nossa ausência de confessionários, volta e meia a catarse vem no desabafo público do pecado privado. Pena é que tantas vezes o entendimento do testemunho redunde numa propensão para a tagarelice.
Nós, evangélicos, somos prósperos em detalhes técnicos: a diferença entre adoração e louvor, a distinção entre conversão e santificação, a nuance de pedir e o pormenor de interceder, entre outras bentas minúcias. Enquanto olharmos para a comunicação como se de um quadro de palavras cruzadas se tratasse permaneceremos no nível lúdico de charadas silábicas. Pequenas crianças a juntar vogais com consoantes. Mas acontece que o evangelho é muito mais do que jogos de vocábulos.
Já Tiago dizia que a língua era fogo. Terão Derrida e Wittgenstein ido tão longe? Entre atear incêndios e servir de bombeiros, as possibilidades comunicativas são diversas. E nem precisamos de voltar à excelente proposta de Cervantes na eloquente parelha canina. É o evangelho de Lucas que afirma que ao nosso silêncio as próprias pedras clamarão. Desde moderar a maledicência a reaprender as virtudes do silêncio, de ser testemunhas capazes a confessar os nossos pecados, já temos trabalho de casa que nos chegue.
Tiago de Oliveira Cavaco

sexta-feira, abril 23, 2004

Do editor
Com o número 16 d'Os Animais Evangélicos chegam:
- Presidentes da República
- Humphrey Bogart
- Léon Bonnat
- Jim Henson
- Lyon de Castro
- e Gomorra.
Sim, o pluralismo é isto.
TOC


"Gomorra 2004".