sexta-feira, fevereiro 13, 2004

[Sem Título]
Há algum tempo atrás contaram-me uma fábula. Como acontece em muitas fábulas, também esta se passava numa quinta, algures à face da Terra num tempo qualquer. Os protagonistas eram um cavalo e um porco. O cavalo vivia fundamentalmente do seu passado brilhante, de ente garboso e elegante. Os notáveis serviços prestados ao seu dono ao longo da vida e o seu carácter dócil mas determinado tinham conquistado nos seres humanos à sua volta uma inenarrável simpatia e consideração. Apesar de velho, desgastado e acabado, mantinha uma posição invejável na hierarquia social da quinta. O porco, por sua vez, era um mero suíno. O que pode ser um porco além de porco? Nem Orwell conseguiu elevar o estatuto dos porcos, muito menos nas fábulas.
Certo dia o trôpego cavalo, já falho de reflexos, não conseguiu calcular bem um salto e lá ficou com um dos seus membros (dianteiros ou traseiros, pouco interessa) ferido. Tal foi a pancada que o pobre cavalo não aguentava as dores e já nem de pé se conseguia manter. A terapêutica embora dolorosa para todos – mormente o próprio cavalo – era inevitável. O equídeo tinha de ser abatido para terminar de uma vez com todas com aquelas dores, mais dos donos do que do próprio, pois o que é a dor se não um tremendo suspiro da alma. Era difícil alguém conformar-se com este inesperado fim para alguém que tinha atraído tantas atenções. Faltavam apenas algumas horas para o desfecho. O cavalo sentia-se como um réu a caminho do cadafalso, um prisioneiro no corredor da morte. Entretanto, no meio de todo aquele desespero, ele ouve uma voz: era o porco a consolá-lo. Como é que um porco está no meio das cavalariças a meio da noite em amena cavaqueira com um cavalo, nem sabemos nem interessa. É uma daquelas coisas que a ficção permite e que a realidade tantas vezes complica a ponto de impedir tais deambulações. Mais do que consolar o cavalo, o porco deu-lhe uma sugestão. “Tens que ser forte e corajoso. Amanhã quando os senhores vierem, vais pôr-te de pé e assim eles já não te matarão, pensando que estás curado”. Só nas fábulas, os porcos têm boas ideias. Mas, o cavalo assim fez. No dia seguinte, os donos chegaram e depararam com aquela comovente, mas ao mesmo tempo surpreendente cena. “O cavalo está curado!” – exclamaram eles. Tão rápido quanto as suas mentes permitiam pensar, ordenaram: “Para celebrarmos esta cura e para nos deliciarmos, organizem a matança do porco!”
Haverá justiça na vida? Na de porcos como este certamente que não! Quantas vezes nos damos aos outros, nos entregamos por determinadas causas, nos esgotamos em trabalho e a paga é tão semelhante à do fim daquele porco. Dizia o meu velho professor de Física que no universo existem imagem reais e imagens virtuais. No entanto, o mundo mudou muito desde que me lembro de ouvir aquelas palavras há mais de 20 anos atrás. A pós-modernidade encarregou-se de criar uma coisa a que se chama realidade virtual. Dizia também o velho mestre que os espelhos criam imagens virtuais. Curiosamente, a palavra latina que dá origem à portuguesa espelho é speculum que por sua vez está na base de palavras aparentemente tão distantes quanto espectáculo e especular.
Não admira que muitos seres humanos à nossa volta se sintam confusos com o mundo em que vivemos. A Guerra do Golfo foi o que a CNN nos quis mostrar, as armas de destruição maciça ainda não apareceram e o Processo da Casa Pia deve ser alguma coisa entre o que vão dizendo os jornalistas e o que se sabe factualmente da investigação. Só apetece gritar: porca miséria!
Timóteo Cavaco