sexta-feira, fevereiro 27, 2004

A fraude
Quando estamos sós, solteiros, descomprometidos, livres, e nos sentimos miseráveis por isso, nada é mais sedutor que a ideia de uma companheira bonita, carinhosa, inteligente, e fiel. A nossa actual liberdade permite, e a nossa insatisfação impõe, um varrimento constante do horizonte, com um olhar crítico e atento, cobiçando ao de leve (para os mais conscientes) as potenciais candidatas. Sem necessidade de esforço, ou de consciência, definem-se as posições relativas e a nossa simpatia, empatia e interesse genuíno de geração espontânea, crescem milagrosamente em relação às eleitas, na devida proporção do seu lugar no ranking. Na pole position estão invariavelmente as de maiores encantos, e parece quase sempre verificar-se uma trágica proporcionalidade inversa entre o desejo e as perspectivas de mutualidade no interesse. Mas como tristezas não pagam dívidas, o sonho prossegue. Com ou sem rosto, sonhamos com alguém que nos ajude a ser quem queremos ser, que nos edifique sem exigências, que seja uma companhia, que nos compreenda e nos aceite como somos, que se entregue e nos ame. Isto nas fases mais serenas e conscientes (de carácter recessivo), pois nas outras, tudo isto está presente, mas como que em surdina, abafado por uma profunda e adolescente fantasia de desejo libidinosamente livre.
Independente das várias faces do desejo, o denominador comum a toda esta procura, é a forma como esperamos que a salvadora relação nos sirva. A força motriz da cruzada sentimental é a satisfação própria e é esse o móbil para todos os sacrifícios que aceitamos: pensamos que vamos ficar melhor do que estamos, pois vamos ter todas as desejadas regalias. Na incontornável fase da paixão, o psicanalista Scott Peck sustenta a ideia da “perspectiva da quebra das fronteiras do eu”, ou seja, o alimentar inconsciente da ideia de que muitas das insatisfações e limitações que temos vão ser extintas ou derrubadas na experiência da relação, e daí a visão paradisíaca e quase imaculada da relação e do outro.
Perante isto, impõe-se um comentário: as declarações de amor no início da relação são no mínimo extemporâneas. Nesta fase existem apenas intenções. Ninguém (penso eu) começa um namoro ou uma relação, por amor e entrega genuína à outra pessoa. Antes, embora de natural boa vontade, e num crescendo de afeição, procura uma cooperativa melhoria. Ao entrar numa relação, ambos acreditam que vão ficar melhor, e é isso que justifica a aposta e a entrega, não o altruísmo, nem a piedade.
E começa a fraude.
Com o tempo, vem o conhecimento do outro, e o verdadeiro conhecimento da ternura. Da partilha de experiências e da vida a dois surge a cumplicidade, que dá corpo a uma fidelidade e entrega que antes existia apenas em intenção e potência. Os carinhos, as mútuas provas de dedicação, os esforços, as tentativas e os erros, as delícias esperadas e inesperadas, e os olhares dentro do olhar, geram paulatinamente algo totalmente novo, e ausente nas equações iniciais – o cuidado e o interesse genuíno pelo outro, pelo seu bem estar, pela sua felicidade, e pela sua completude – o amor. Quando damos por nós, os móbeis da caçada primordial surgem mirrados e incompreensivelmente mais débeis, menos importantes, perante o outro que agora conhecemos, agora em pessoa, agora em carinho. Simultaneamente, o nosso próprio amadurecimento, vindo pelas lutas contra o nosso orgulho e egoísmo, pela progressiva aceitação mútua e entrega ao outro, começa também a transformar-nos. Por esta altura, começam a justificar-se as declarações de amor. Tornamo-nos seres mais amantes, e somos cada vez mais capazes de dar em vez de exigir, e nesta perspectiva, somos cada vez mais humanos, concretizando a intenção de Deus para a nossa criação. Por isso Deus disse que não era bom que o homem estivesse só. Porque a intenção da criação era o amor e porque a queda impunha uma escola onde pudéssemos aprender a amar. O casamento, a entrega, a fidelidade, no fundo, a família, como escola de amor, como sacramento de humanização. Aprender a amar os próximos para aprender a amar ao próximo. Na família, e para crescer nos estudos em humanidade, surgirão mais tarde os filhos, que elevarão os níveis de entrega e a capacidade de sacrifício, a dimensões completamente insuspeitas ao olho pueril do conquistador egoísta das primícias relacionais, mas apesar da fraude... é realmente bom que o homem não esteja só!
Tiago Branco