sexta-feira, fevereiro 20, 2004

[Sem Título]
Embora possa parecer um pouco insólito para quem vive neste cantinho ocidental da Europa, a verdade é que, nos últimos 6 anos o país que mais frequentemente tenho visitado é o Chipre. Certamente um pequeno país, mas cheio de grandes contradições: geograficamente está mais próximo da Ásia, mas a história, a cultura, a religião, quiçá, trouxe-o para a Europa; um território de reduzidas dimensões, mas que nem por isso deixa de estar partilhado por dois Governos que reclamam simultaneamente soberania; uma democracia moderna e progressista (na zona “livre” da ilha), mas que nem por isso deixa de ter a “última cidade dividida do mundo” – Nicosia, a capital; um punhado de metros quadrados onde no mesmo dia se pode estar na praia a gozar os encantos do sol e do Mediterrâneo e menos de uma hora depois já se pode estar de gorro e cachecol nas montanhas com neve.
Na altura que escrevo este texto, aqui estou eu mais uma vez, junto ao mar da Baía de Larnaca. Tudo está tranquilo! Certamente que estar aqui pode ser mais seguro do que arriscar uma visita a Nova Iorque, Londres, Paris ou Berlim, nos dias que correm. Mas a menos de 30 quilómetros de onde me encontro está uma “linha”. Uma linha que homens decidiram traçar: não uma linha imaginária, qual meridiano ou paralelo, mas uma linha real, a “Linha Verde”, fortemente vigiada e guardada por militares destacados pelas Nações Unidas. Para lá dessa linha, existe um povo diferente, uma língua diferente, uma moeda diferente, uma religião diferente. E, na verdade, não há nada pior no mundo do que duas pessoas ou dois povos se ignorarem mutuamente. Apesar de, precisamente na semana em que aqui me encontro, estarem a decorrer negociações visando a reunificação da ilha, a verdade é que as partes se ignoram mutuamente. Não querem sequer saber que existe vida para além da Linha Verde.
Não posso dizer que desconheça a ilha. Larnaca, Limassol, Pafos, as montanhas de Trodos, o norte “livre” da ilha, o “local de nascimento de Afrodite”, “os banhos de Afrodite”, tudo já calcorreei por mais do que uma vez. Afinal, um dia chega para ver tudo isto. Até mesmo Nicosia já tinha visitado. Ah, Nicosia, Nicosia! Não há espectáculo mais triste do que uma cidade dividida mesmo à frente dos nossos olhos. Tudo serve para marcar posição, tudo serve para exacerbar o ódio. Pode ser um muro, pode ser um prédio destruído pela devastadora guerra, pode até ser uma parte da muralha veneziana que em tempos protegeu a cidade dos ataques externos. A verdade é que de um lado e do outro do “muro” se vivem vidas completamente diferentes. Quem disse que “Berlim” tinha acabado? Nicosia continua a ser um símbolo do que mais horrível existe na vida: uma nação a lutar contra si própria.
No entanto, a utopia nunca esteve tão perto de se concretizar. Anuncia-se já para Maio deste ano a reunificação. E, hoje, tive oportunidade de acrescentar uma experiência diferente à minha existência. É difícil registar os sentimentos… não sei o que é mais chocante: saber que existe uma “linha” e vê-la à frente dos meus olhos, se perceber o que 30 anos de separação causaram. A verdade é que cruzei a linha! Do outro lado encontrei pessoas a viver literalmente no terceiro mundo. Provavelmente nem sabem que a uma distância, que em alguns casos não ultrapassa os 5 metros, a vida é completamente diferente. Não sei o que pensar, nem o que dizer. Também nada garante que a “civilização” faz as pessoas mais humanas e mais felizes.
Timóteo Cavaco