Shame on me
Quando acordei hoje de manhã liguei tropegamente o leitor de cds. A música levou-me a recordar coisas que se passaram há uns 11 anos. A associação de ideias para essa memória foi tão estúpida que não vou perder nem tomar tempo a descrevê-la.
Recuo mais de uma década. A minha turma do oitavo ano tinha Electrotecnia não era pouco frequente o professor ocupar-nos com qualquer coisa enquanto, sentado nas mesas mais atrás, analisava e soldava pequenos circuitos electrónicos. Numa dessas vezes incumbiu-me de passar no quadro qualquer coisa que não recordo, talvez revisões para o teste sumativo da aula seguinte. As folhas que eu transcrevia estavam na secretária dele e ao mesmo tempo, na outra ponta da sala, entretinha-se com o ferro de soldar e uma barafunda microscópica de resistências e transístores. Para meu espanto, um caderno aberto ao lado das folhas continha o que indicava ser a prova escrita da próxima aula.
Em cada viagem entre a secretária do professor e o quadro, fazia uma paragem na minha carteira onde ia, aos poucos, transcrevendo o teste sumativo. O desvio anormal da trajectória não era notado pelo ocupado mestre, nem mesmo quando se gerou a exagerada procissão dos colegas até à minha mesa, copiando cada um para si integralmente o enunciado.
Na aula seguinte fui esperto o suficiente para não acertar a totalidade das perguntas mas, quando o nervoso miudinho e o teste acabaram simultaneamente, chegou outra inexplicável sensação fria dentro de mim.
Às vezes temos reacções explícitas dignas de um figurante de novelas portuguesas: quando recebi os 90 e muito por cento no teste de Electrotecnia foi preciso grande alienação do professor para não notar a desmotivada e plangente apatia. Na adolescência quando estamos apaixonados reparamos nas letras das músicas românticas; quando estamos de consciência pesada reparamos nas «réplicas miniatura com asas de anjo que sobrevoam os personagens e lhes dizem “Shame on you!”» nos desenhos animados.
Dentro da igreja desaprendi a distinguir consciência de Espírito Santo. Toda a gente se sente mal mas nem toda a gente tem esse Espírito Santo: eu sentia-me mal como toda a gente. A raiz do desconforto é que era banalizada numa pessoa de menor consciência - seria essa a diferença que distingue quem tem o Espírito de quem não o tem? Era muito confuso para um puto de 13 anos que nem um teste de Electrotecnia fazia sem ajuda. O que desaprendi na Igreja é tudo culpa minha, culpa do emaranhar caótico da adolescência. Dúvidas e mais dúvidas. Afinal se o Espírito Santo é o Consolador, que raio de consolo era aquela inexplicável sensação fria?
Hoje em dia muitas vezes o desagradável e o agradável jungem. A dorzinha que insta ao arrependimento lembra-nos com um sorriso que ainda estamos suficientemente perto para sermos avisados. A fronteira entre manifestações do Espírito e da consciência está mais relacionada com o tipo e a direcção do arrependimento que urge do que com reflexões místico-filosóficas que se interponham. Não há lugar para confusões entre uma realidade que nos pesa e uma realidade que nos persuade. O Espírito convence-nos da justiça, do pecado e do juízo e nisso também Ele é consolador - se há coisa aprendida onde sinto um pingo de maturidade em 10 anos, nisto é.
Voltasse eu atrás e talvez tivesse confessado o “crime”. Já a consciência me pesa por proferir algo tão improvável. A cobardia é, com a estupidez, o pior inimigo do nosso carácter e há 10 anos conseguir um teste para os colegas sem vacilar era tido como acto heróico. A consequência do meu pecado é voltar a sentir o inexplicável frio desagradável de cada vez que recordo o episódio, mas lá está, estou ao alcance do aviso.
Quando me lembrei desta história ao acordar, não tive tanto em conta que já passava da uma da tarde. Um diabinho pequeno com a minha cara dizia-me que estava tudo bem porque não era dia de trabalho. Uma miniatura minha alada dizia-me, por sua vez, que não eram horas decentes para continuar na cama. O que sei é que para esta situação caricatural o Espírito Santo não é chamado.
Samuel Úria