sexta-feira, abril 23, 2004

[Sem título]
Falar da morte é sempre um empreendimento difícil. Difícil e perigoso, devo acrescentar. Difícil e perigoso, desde logo, porque a ela estão associados dois inevitáveis aspectos: em primeiro lugar, cria-se o terrível sentimento para os que cá ficam de uma ausência inexplicável, de uma viagem sem retorno ou mesmo de um adeus que se não disse; mesmo para nós cristãos para quem a crença numa vida ulterior faz parte da nossa existência aqui. Por outro lado, a morte de alguém promove, em geral, uma análise parcelar da vida passada do defunto, o que nem sempre, para o bem ou para o mal, faz jus à verdade.
Tudo isto à laia de introdução uma vez que, mesmo correndo os riscos acima enunciados, gostaria hoje de falar de duas pessoas que nas últimas semanas deixaram de ser contadas no número dos mortais. A ambas conheci, embora de diferentes formas e em diferentes contextos. De uma todo o país falou, da outra, talvez uma pequena minoria de portugueses venha a falar.
O primeiro era o decano dos editores portugueses, o respeitado Francisco Lyon de Castro, dono de um significativo império gráfico e editorial no país. Nos nossos vários encontros este notável ancião sempre tinha alguma coisa para me ensinar, uma história para contar, um livro a recomendar – dos seus, claro está – ou até mesmo para oferecer. Confesso que por vezes me sentia um pouco intimidado perante tão notável vulto da nossa história recente, mas o Sr. Castro rapidamente se encarregava de fazer esquecer as formalidades e de me tratar de forma tão prosaica como se sempre me tivesse conhecido. Não vou repetir aqui o que o país já disse de forma justa sobre a excepcionalidade desta personalidade. Poucos ou ninguém, porém, terão dito que este homem desempenhou um papel muito importante para que os portugueses e outros falantes da língua portuguesa tivessem tido acesso mais facilitado à Bíblia. Embora não fosse pessoa religiosa – e até detinha convicções muito vincadas a esse respeito – nunca deixou que as suas ideias próprias fossem, de uma forma ou outra, impeditivas da circulação da cultura e do livro. Genro de pastor protestante, sempre manifestou um enorme respeito pela cultura protestante e na sua gráfica foram impressas, ao longo de quase 30 anos, centenas de milhares de Bíblias e outra literatura bíblica que têm chegado a dezenas de países no mundo. A sua intervenção foi também essencial para que as Publicações Europa-América tivessem editado em 1981 o Novo Testamento da versão bíblica O Livro.
O segundo homem foi um dedicado pastor baptista de nome Artur Soares. Para nós que o conhecemos ficará imortalizado como o “pastor do serrote”, ferramenta da qual conseguia extrair os mais belos sons. Foi um homem bom e afável e não me lembro que tivesse sido grande protagonista de disputas ou conflitos. Dele recordarei o entusiasmo com que falava e vivia a evangelização dos povos, começando pela do nosso. É uma daquelas pessoas que recordarei como vivendo aquilo em que acreditava. Não se lhe conhecem grandes teorizações ou modelos aturadamente desenvolvidos mas recordarei que a sua mensagem era coerente e constante quer fosse a cantar, a tocar, a pregar, ou a mostrar o filme Jesus como várias vezes o vi fazer.
Notável é quando continuam a existir pessoas que ficarão para sempre na nossa memória pelas suas convicções e pela coerência do que anunciam. Num mundo dominado por tantas hesitações, subjectividade, relativismo e situacionismo faz-nos bem irmos contando com alguns exemplos de consistência.
Timóteo Cavaco