sexta-feira, abril 30, 2004

Meias-Estórias
Somos seres relacionais. Desculpem lá começar assim com um dogma, mas o tema que hoje gostaria de partilhar convosco, não me deixa espaço para as discussão deste princípio. Aliás, a pertinência deste tema vem precisamente do facto de todos estarmos envolvidos em relações, e de as procurarmos, de uma maneira geral, com insistência. Por ser um tema tão actual e tão importante para nós, temos assistido nos últimos tempos a uma série de sucessos de bilheteira em filmes da main stream do cinema americano e europeu que abordam as relações amorosas, e que através das estórias que contam, pretendem expor, senão mesmo propor a afirmação de novos paradigmas relacionais. Filmes como Love Actually, Along Came Poly, Lost in Translation, ou Cold Mountain (do mesmo realizador de The English Patient), questionam, cada um da sua maneira, a necessidade e o sentido de conceitos como a fidelidade, casamento e família. No seu conjunto, expõem a fragilidade das relações, a inevitabilidade das separações, e a injustificabilidade da fidelidade, ao mesmo tempo que afirmam uma misteriosa e incontornável vontade própria das nossas emoções, sobre a qual não temos, nem é suposto tentarmos ter algum tipo de controlo. A ideia de que nos assuntos do coração não manda a razão vem fragilizar ainda mais as já à partida débeis aspirações a uma relação estável e duradoira. Sob o domínio das nossas emoções, já não faz sentido lutar por relações que começamos a considerar pobres, quando encontramos alguém mais bonito, que aparentemente nos realiza muito mais, com quem nos sentimos muito melhor, cuja imagem não foi desgastada por lutas travadas em comum, no fundo, alguém com quem tudo parece ser mais fácil. A paixão por essa nova pessoa e pelos renascidos prazeres que nos traz, parece inevitável e não demoramos a assumir e a abraçar esse sentimento. É o começo de um processo de separação emocional que torna admissível, justificável, e quase até desejável o adultério, o grande protagonista das telas que ao mesmo tempo retratam e instituem a realidade. A crise da fidelidade dita a crise do casamento (que no fundo é um contrato de fidelidade), e da família. Algumas relações, embora com cicatrizes profundas acabam por sobreviver, mas para os que aprendem a assumir à partida o carácter tentativo e efémero das suas relações, é apenas uma questão de tempo até à próxima seta cupidosa. As fracas expectativas e o egoísmo matam à partida qualquer esperança numa relação sólida. Experimentar, andar, tentar viver junto e ver no que dá são verbos muito mais prudentes. Mantemo-nos à defesa, porque não queremos sair magoados. Afinal, só vale a pena estar numa relação se esta for boa para nós, e mais vale estar só do que mal acompanhado. Estes são os novos paradigmas relacionais que se instituem e que proclamam a libertação de uma moral que se diz rígida e com cada vez menos adeptos. As libertações sabem sempre bem. É por isso que as estórias das telas nos tocam. Com um sentimento de realidade e de sofrimento, juntamo-nos aos personagens nas suas lutas, ansiamos com eles pela libertação das relações insatisfatórias e celebramos com eles as descobertas de novos amores. Mas nas telas as estórias param ali. Não vivem o suficiente para o desgaste, não experimentam as mesmas desilusões e nunca se transformam no que começaram por desprezar. Nestes argumentos, a cobiça de novas pessoas, a disponibilidade para novas relações e as soluções fáceis nunca chegam a fazer mais vítimas. São meios–argumentos.
Tiago Branco