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Durante esta semana a senhora Ministra da Justiça anunciou na Assembleia da República, com pompa e circunstância, o fim do “balde higiénico” nas prisões, para muito em breve. Não pretendo ser irónico para o Governo da República e muito menos para aqueles que no século XXI ainda se têm que sujeitar a esta prática humilhante, mormente os que precisamente se encontram reclusos. Mas, a verdade é que esta declaração – que não sei se passou de forma meramente incidental na comunicação social – me fez pensar no sentido mais profundo da solidariedade. Muitas são as misérias deste mundo e de nada valerá a pena estar aqui e agora a expressar falsos sentimentalismos. No entanto, a realidade brutal é que existem inúmeros submundos na nossa civilização que só ascendem ao nosso conhecimento – tão mortais cidadãos quanto os protagonistas destas situações – por mera casualidade. Razão tinha Jesus ao dizer que não veio curar os sãos mas os doentes. É certo que os doentes não são só os desvalidos, marginalizados e excluídos da sociedade. Muita miséria moral e espiritual há por aí nos mais mediáticos símbolos da vida pública. Este é o cabal paradoxo do mundo em que vivemos, seja neste século seja nos séculos passados ou vindouros.
Por falar em contradições e paradoxos, foi esta semana lançado mais um romance do nosso Prémio Nobel (por favor, não acentuar a pedido do laureado…) José Saramago. Quer se goste quer não, ele é genial, pois de outra forma talvez não se falasse tanto nele. É ele próprio paradoxal – veja-se o seu dilema deliberadamente não resolvido de apelar militantemente ao voto em branco e ao mesmo tempo ser candidato, meramente formal, às próximas eleições para o Parlamento Europeu – e gera “paradoxalidade”, por exemplo a mim, que consigo não concordar com quase nada do que ele diz e ao mesmo tempo apreciar as suas palavras, a forma como as diz, mas principalmente como as escreve. Para um fraco leitor de ficção como sou, ter lido três romances de um mesmo autor é um verdadeiro recorde, descontando os geniais clássicos portugueses como Eça ou Camilo que devorei na adolescência. Sem dúvida polémico, e essa faceta não lha invejo, Saramago consegue convencer um público relativamente diverso, talvez porque tendo falhado em muitas coisas na vida – ou ele próprio ou aquilo em que acreditava – finalmente se assumiu como um fantástico contador de histórias (recuso-me a dizer “estórias” – isso não existe!), um fabulador, um inventor de metáforas, muitas vezes muito mais um argumentista que um autor. Reconheça-se-lhe a virtude da imaginação não necessariamente na invenção, mas certamente na manipulação, muitas vezes quase genética, das suas personagens. A forma como cidadãos comuns se entrecruzam com personalidades históricas é soberba: quisera eu ter a capacidade de imaginar o padre voador ser amigo de Baltasar e Blimunda e páginas depois ter o rei cujo documento mais veraz da sua existência está lá em Mafra, tão pétreo e sólido como há quase três séculos atrás.
Como Blimunda se calhar muitos de nós conseguimos ver para além da pele, mas vendo nada podemos fazer. Se calhar, andam para aí muitas Blimundas que não querem dizer que o são, têm vergonha. Esta semana ouvi o próprio Eduardo Prado Coelho dizer que escreveu uma crónica no Público – a qual não li – sobre a entrada no estacionamento do “El Corte Inglés”. Pensava eu que era o único que me sentia enjoado a dar tantas e tantas voltas com a sensação de que aquilo nunca mais vai acabar. Afinal, isso até já é motivo de crónica. Quando andava na tropa e um qualquer cadete trocava o passo em relação ao restante pelotão, o tenente imediatamente gritava: “só você é que está bem!”. Às vezes ando no mundo com esta sensação de que afinal ando para aqui com o passo trocado, mas também que aqui e ali se vão encontrando umas Blimundas, uns cadetes confundidos, que não querem simplesmente aceitar como final aquilo que parece tão evidente.
Timóteo Cavaco