A parábola do paroleiro
Uma vez descobri a fórmula para a banal embalagem de cereais. Falo dos cereais de pequeno-almoço. Esclareço mais: falo dos cereais de pequeno-almoço destinados à pequenada. Nada tenho contra os outros publicitados para manutenção da linha, mas não me suscitam interesse nem apetite. As caixas desenhadas com poucos volumes e muitos espaços em branco são só atractivas à senhora que lhes augura uma miraculosa perda de peso (é preferível essa promoção pouco enganosa do que a escatologia explícita deste alimento rico em fibra).
Refreio dispersões e volto a falar da caixa para o pequeno-almoço dos mais novos. Depois de muitas analisadas, no mesmo número consumidas, consegui esboçar a minha embalagem fictícia. Ignorei informações nutricionais comuns nas faces mais pequenas. Igualmente o fiz com os habituais passatempos e promoções que usam figurar na parte de trás. O meu alvo era a frente, que chamo agora de “fachada” recordando o rigor arquitectural a que submeti tais considerações.
Tinha por base um rectângulo branco. O elemento a rabiscar em primeiro lugar representava o que, fotograficamente, deveria ser a tigela com os cereais em questão. Era essencial o pormenor do abundante fio de leite a cair sobre o recipiente e a rodear os pequenos e apetitosos flocos.
Logo a seguir surgia uma das partes mais importantes: a mascote. Num cruzamento estético entre Jim Henson e Walt Disney, o engraçado e simpático (ora carinhoso ora jovialmente rebelde) animal segurava a enorme colher que mergulhava na tigela. Algo aleatório na outra mão era o polegar esticado num punho cerrado. Fixe!
Em passos largos só faltava o nome a dar àquele alimento matinal. Podia guiar-me pelo sabor, estrangeirando pateticamente a palavra que lhe correspondesse. Tendo em conta a originalidade já era difícil criar curtos polissílabos a partir de “chocolate” ou “mel”. A outra estratégia era “onomatopeizar” no título as características estaladiças do cereal. “Krakos” era uma opção ridícula como qualquer outra. Aponto que no desenho das letras o primeiro K se ia desmembrando em pequenos estouros estaladiços. A combinação das duas estratégias descritas no parágrafo não só é funcional como frequente.
Basta. Não era sobre cereais que queria ou deveria falar. Quem já está habituado às minhas patranhas não deve estranhar este brusco desviar confessional. Para hoje tinha-me julgado capaz de condensar uma parábola moderna. Peguei nas de Jesus. “Depois de muitas analisadas, no mesmo número consumidas”, consegui esboçar a minha. Não, na verdade não consegui. Sabia os passos. Reconhecia morfologicamente a teoria, a necessidade de construir uma história que não fosse uma simples fábula com seu moral, uma história que captasse atenções, uma história que fosse contada para ser percebida mas também para o efeito contrário. Tinha a fachada, sabia o que desenhar, até conseguia descortinar os ingredientes. Tinha a personagem com o polegar esticado, tinha a tigela. Faltou-me o leite. Faltou-me o sabor impregnado nas letras. Faltou-me a anunciada alegria do pequeno almoço de amanhã na embalagem que hoje se vê. Faltou-me o leite, a água, qualquer sucedâneo.
Foi preciso assumir-me como personagem e reconhecer a minha inabilidade para, no fim da minha parolice, me aproximar microscopicamente de uma parábola. É por estas e por outras que não sou O Filho do Homem. Por estas e por todas as outras.
Samuel Úria