Cristo, ao vivo e a cores!
Talvez seja o meu filme favorito: Casablanca. Com um pormenor, feito por-maior ... a preto e branco. Aquela desolada espera na Gare du Nord, em Paris, à chuva, é de antologia. Humphrey Bogart é o existencialista à la Camus: "I stick my neck out for nobody", com laivos de Picasso apaixonado por Jaqueline: "You can play for her!"; e a Ingrid Bergman é ... linda. Eu não a deixava partir no avião, mesmo sendo para Lisboa, para depois dar uma de folgazão: "I believe this is the beginning of a beautiful friendship". OK! Adiante! Eu disse preto e branco, porque entretanto surgiu uma cópia retocada a cores que eu simplesmente detesto. Não por ser um fundamentalismo cinéfilo, mas porque esteticamente acho medonho. As pinceladas de computador que anulam os vincos do preto e branco, não me convencem. OK! Adiante!
Vem isto a propósito do debate recorrente, por altura da Páscoa, sobre o Cristo histórico. A "Time", a "Visão", a "Veja", traziam mais uma vez artigos sobre o "Verdadeiro Jesus", "Como era o Mundo no Tempo de Jesus", etc. E, francamente, não vejo razão para tal alvoroço, porque esta é uma questão datada, fora de moda, e ao arrepio dos contornos socio-culturais aceites como válidos. Vejamos: a questão assentava, há 70 anos atrás (pasme-se com a atraso dos jornalistas, e alguns teólogos da nossa praça), numa distinção clara entre o Cristo Histórico e o Cristo Bíblico. A ideia era despir Cristo das roupagens (Ele que só tinha uma túnica!) teológicas dos Evangelistas e apresentar Cristo limpo de qualquer preconceito simbólico. Era o Cristo a preto e branco.
Ora, os teólogos e os historiadores actuais, desapaixonados e sem traumas liberais, afirmam que os relatos dos Evangelhos passaram por diversas edições, até chegarmos ao produto final que temos: um retrato teológico de Jesus ao vivo e a cores. Sem dramas. Sem problemas de cometer suicídio intelectual. Numa lógica holística, afirma-se que Cristo foi uma figura histórica conforme os relatos teológicos dos Evangelhos. É João que escreve: "Jesus fez muitos mais sinais na presença dos seus discípulos que não estão escritos neste livro; mas estes foram escritos para que creiam que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que crendo possam ter vida eterna no Seu nome" (20:31-31). Então, os Evangelhos não são biografias, no sentido clássico, de Jesus. Os escritores sagrados, inspirados pelo Espírito Santo (sim! A Bíblia é plenariamente inspirada pelo infalível sopro de Espírito) seleccionaram o que eles acreditavam ter poder para cumprir os seus propósitos, que era dar uma visão específica de quem Jesus era, e do que significava a Sua vida. Aqui, eu sou totalmente pela cor.
Um Cristo ao vivo e a cores, é um Cristo Histórico, encharcado no Cristo Bíblico. Cristo não é uma história da carochinha. É bem real! Cristo não é uma figura mística. Está carregado de símbolos teológicos! Talvez isto seja mais claramente expresso na tensão permanente que habita a figura do Cristo Ressurrecto. João apresenta o Cristo Ressurrecto com um corpo físico, desafiando Tomé para por o dedo nas cicatrizes, ao mesmo tempo que o retrata com um corpo espiritual a atravessar portas solidamente fechadas. Lucas diz que o Cristo Ressurrecto come peixe no churrasco para demonstrar que tem carne e sangue, mas também desaparece no ar depois do seu encontro com os discípulos de Emaús. Claramente, o Cristo Ressurrecto não é um mero cadáver animado. Nem é um Cristo Histórico a preto e branco. É um Cristo ao vivo e a cores! Que afirma o seu carácter histórico, e confirma a sua vocação teológica.
A isto chamo o "Escândalo da Graça". É uma graça escandalosa que Deus tenha habitado entre nós com uma cor definida de cabelo, uma tez de pele peculiar, uma voz de timbre próprio e uns gestos só seus. Isso é história. É do foro do Escândalo da Graça que Ele tenha morrido por mim, ressuscitando em carne para me trazer a esperança da Ressurreição futura, e a certeza de que a minha Fé não é cesto sem fundo. Isso é teologia.
O Cristo ao vivo e cores, brilha através das ambiguidades humanas, e eleva-se com a certeza de amanhãs ainda não sonhados.
Samuel Nunes