sexta-feira, abril 02, 2004

[Sem título]
A dona Laurinda ouviu bem cedo que a religião não salva. Perdeu-se na semântica e achou-se a pluralizar: se “a” religião não salva talvez “as” religiões o façam. Apesar de lhe ser estranha qualquer terminologia matemática, compreendeu muito bem como aumentar probabilidades.
Bendizia dominicalmente o laivo de emancipação que exigira em idos anos 50. Fizera inveja às moças humildes da terra quando aos 20, contra tudo e contra todos, tirara a carta de condução. Assim sendo, 50 anos volvidos, era um Rover cor-de-vinho o primeiro templo onde Laurinda, aos Domingos, assentava pé.
Perto da Igreja matriz de Monsaraz nunca faltaram lugares para estacionar. Enquanto a viatura avermelhada gozava a sombra de um largo carvalho, a proprietária empenhava-se na missa, semelhando os pormenores litúrgicos que nem sempre teve na ponta da língua. Mas nessa ponta custava-lhe o poisar da hóstia; uma estranha aspereza de dentes assolava-a. Não prestava atenção e sentia-se elevada pelo boçal sacrifício bucal. No meio da apoteótica comichão nas gengivas muitas vezes recordou-se, por outro nome, das probabilidades. Imaginava que cada pedaço de Cristo tragado era um degrau galgado rumo ao Céu.
A frugalidade do “corpus christi” justificava-lhe o segundo prato de cozido no restaurante da afilhada. Na degustação dos enchidos, na insistência (sempre recusada pela afilhada) em pagar a conta, no atestar do Rover numa bomba ao pé dos Correios, na sesta de hora e meia, em tudo, seguia com religiosidade a dogmática tradição dos domingos.
O plácido sono durava até às quatro e picos, mesmo à justa para conduzir uns quilómetros até à Igreja Evangélica da Assembleia de Deus. Ali tudo era diferente, mais desprendido, com esquemas menos rígidos. Laurinda não se sentia com idade para improvisos cerimoniais. Antes tentava enquadrar uma estratégia cujos movimentos cobrissem qualquer situação. Quase perdeu a compostura quando o corpulento brasileiro na bateria se desfez em rufos e taroladas. Quase se forçou a perdê-la quando o dom de línguas começou a tomar alguns dos mais efusivos no salão de cultos. A emancipação na condução não a impediu de acabar a escolaridade antes que aprendesse uma única palavra em francês. Todavia, enquanto vociferasse coisas ininteligíveis, Laurinda sabia que as suas hipóteses no Paraíso só poderiam aumentar.
Num febril Sábado à noite de Verão, a septuagenária ajoelhava-se e alternava rezas com orações. Conhecia bem a destrinça e, depois um Pai Nosso e antes de uma Ave Maria, entregava-se ao (mesmo assim estereotipado) diálogo com Deus mais usual na faceta protestante. Pediu ao Senhor que a ouvisse e que a guardasse do mal. Quem não a ouviu, com certeza, foi o Rover cor-de-vinho.
A manhã do dia seguinte começou como as de todos os outros domingos. Na estrada até à Igreja matriz, a dona Laurinda deu pela falta da carteira. O descuido era embriagador, mesmo que a afilhada nunca aceitasse dinheiro ou que o depósito ainda tivesse suficiente gasolina. O dia do Senhor só o era com a carteira à mão. O escrúpulo rotineiro era a maior veneração para onde poderia direccionar o seu fervor religioso. Se acelerasse talvez pudesse voltar a casa e de novo à Igreja. Era perigoso qualquer benzer não precavido de costumes, mas mais perigosa foi a inversão de marcha.
Colhida pelo camião de mudanças que vinha no outro sentido, Laurinda teve a morte num instante. A confundida alma viu-se rodeada de uma inaudita escuridão.
-Estou…estou no purgatório? – perguntou titubeante.
-Oh minha senhora – disse a voz respeitosa à beira de esgotar uma infindável paciência – com franqueza...Você não percebe mesmo nada de nada!
Samuel Úria