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Num ano em que a Semana Santa fica inevitavelmente associada ao filme de Mel Gibson “A Paixão de Cristo”, talvez convenha relembrar como os teólogos têm interpretado ao longo da história do Cristianismo o tema da morte de Jesus. De facto, numa questão tão central para a fé cristã é natural que haja diferentes opiniões e diversas sensibilidades pelo que importa compreender como elas se articulam.
Concorde-se ou não com a perspectiva de Gustaf Aulén em Christus Victor, a verdade é que este autor nos dá um bom resumo de como a Cristandade tem entendido o tema da expiação ao longo dos séculos. Para este autor, há fundamentalmente três épocas e três principais influências na compreensão do tema.
A perspectiva Clássica foi defendida logo no início do Cristianismo por alguns Pais Gregos, sendo que a mesma dava ênfase à vitória que Cristo outorgou às forças das trevas através, nomeadamente, da sua ressurreição. A perspectiva Latina começou por ser tratada de forma mais sistemática por Santo Anselmo (séculos XI-XII) e encarava a morte de Jesus na cruz como a satisfação da justiça divina e do perdão dos pecados. Santo Anselmo é mais conhecido pelo seu Argumento Ontológico para a existência de Deus, mas não pode ser ignorado o seu fantástico trabalho na temática aqui abordada com a obra Cur Deus Homo (“Porque Deus se tornou homem?”). Finalmente, a perspectiva Subjectiva teve como grande defensor Pedro Abelardo, que foi um verdadeiro elemento de charneira – tanto cronológica como ideologicamente – entre Santo Anselmo e São Tomás de Aquino. Esta perspectiva dava mais ênfase à resposta pessoal ao amor de Deus manifestado em Cristo, tendo sido perfilhada mais tarde (Século XIX) pelo liberalismo teológico.
O conceito de expiação prevalecente no Protestantismo na época da Reforma foi fortemente influenciado pela perspectiva de Santo Anselmo, podendo a sua formulação ser facilmente suportada pelas teorias da eucaristia memorial de Zuínglio e da justificação forense de Melanchthon. Neste campo, Zuínglio opunha-se tanto ao conceito católico tradicional da transusbstanciação (o sacrifício repetido na celebração eucarística) como ao conceito luterano de consubstanciação (a presença simultânea de Cristo na eucaristia e simbolicamente no comungante).
Melanchthon olhava também para o sacrifício de Cristo como algo que ocorreu na história, ou seja, no passado e de uma vez por todas. Aliás, a palavra inglesa que traduzimos por expiação – atonement – tem esta assonância: at-one-moment, num único momento. Ou seja, Cristo já fez tudo, nós somos apenas receptáculos imerecidos da graça de Deus.
Ainda assim há diferenças entre os dois, sendo que Zuínglio tendeu mais para a linguagem do que mais tarde viria a ser conhecido como a da Substituição Penal, enquanto Melanchthon recorreu mais aos conceitos de satisfação encontrados em Santo Anselmo.
Na verdade, este como muitos outros temas na teologia não podem ser tratados com leviandade nem se pode ter a pretensão de obter uma resposta final e definitiva para algo tão central e tão tocante para cada um dos cristãos. Acredito sinceramente que cada um de nós estava lá presente naquele momento em que os cravos foram enterrados na pele e na carne de nosso Senhor Jesus Cristo. Acredito que mais do que atribuir culpa aos judeus ou aos romanos é importante que reflictamos sobre a nossa responsabilidade individual e sobre a culpa que Jesus suportou em nosso lugar. Não haverá melhor maneira de celebrarmos esta Páscoa.
Timóteo Cavaco