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A minha visão da Páscoa não é intimista. Seria pouco modesto pensar-me dono de emoções inéditas tratando-se de um “fenómeno” que aconteceu para todos. Na semana passada recusei escrever sobre a Páscoa por um motivo que encerra vários: achei-me indigno. Sei como funciono e como a “prosápia da prosa” acaba por contaminar, a meio, o que iniciei com boas intenções. Jesus morreu pelos que cometem o pecado da bazófia e ao menos na Páscoa esses deviam calar-se. “Eu sou um túmulo”, exclama-se comummente em promessas de abstenção no falar. Perante o “túmulo vazio” este ano decidi nada dizer. Calei-me.
Os minutos de silêncio institucionais premeiam o óbito de uma vida notável. Pela morte de Cristo deviam passar a horas. Pela notabilidade da Sua vida deviam ser acompanhados de lágrimas. Lágrimas de sangue quando nos for fisicamente possível.
É brutal o luto silente. Tão arrebatador que se torna um conforto apetecível, um empolgante momento de confraternização muda em estádios de futebol. Este ano eu quis festejar também os golos em silêncio, das lágrimas de dor passar às da comovida alegria. Dos gemidos sem som passar aos efusivos mutismos de felicidade.
As pessoas habituaram-se àquela ideia de que o Natal deveria ser todos os dias. Libertam o desejo de contacto amistoso com o anónimo, da boa-vontade emoldurada em saudações ao próximo. Não são maus sentimentos e têm o sabor daquela rodada geral que nos pagam só porque calhou estarmos num determinado café. O copo sabe-nos bem mas continuamos a desconhecer o aniversariante. E que tal Páscoa ser todos os dias? “Credo, tanto sangue!!”. Darmos os coelhinhos de chocolate ao nosso afilhado também não deixa as baterias do altruísmo lá muito carregadas, pois não?
Comparar a importância do Natal com a Páscoa é um exercício estulto. O menino Jesus na manjedoura e o Cristo ensanguentado são das dissociações mais imbecis que prevalecem, inconciliáveis, na mente humana. De que seria redentor um Deus menino que não viesse a ter chagas nas mãos?
Lembramo-nos de festejar o aniversário de Cristo. Lembramo-nos de celebrar o aniversário de todos os que nasceram de novo? Criaturas estranhas estas que escolhem uma cruz e um sepulcro como maternidade. Mais estranho de entre elas sou eu que pareço ter esperado uma semana para publicamente soprar as velas. Neste bolo não há transubstanciação. Quero as minhas velas sempre acesas.
Apelei ao silêncio próprio por ser indigno. Apelei ao silêncio próprio para não serem vãs as minhas palavras. Apelei ao silêncio próprio para gritar, de dor, arrependimento e alegria, sem abrir a boca. As palavras sem som também se esgotam e antes de verbalizar um agradecimento já me começa a escapar o lacrimoso “Tudo isto por um gajo como eu?”
Samuel Úria