sexta-feira, abril 30, 2004

Sexo: ética e estética
O pobre do Beckam tem andado atrapalhado com as mulheres. Elas surgem do todo o lado a dizer que tiveram um caso com ele. É uma fartura! A Vitória vai-se aguentando à bronca, exala perdão por todos os poros. O interessante nos comentários das "amantes" é a referência inevitável ao "desempenho sexual" do futebolista. Ou ele é "geneticamente abençoado", ou gosta de "ficar por cima", ou então "beija lindamente". Tudo comentários cor de rosa. (suspiro!)
Dito doutra forma: há uma preocupação clara pela estética, e um desprezo pela ética. Ninguém achou mal trair a Vitória. Ninguém falou na vergonha dum flirt com um homem casado. Ninguém abordou a dor que as notícias irão trazer à família Beckam (há filhos envolvidos, certo!) Mas, na verdade é banal, esta atitude social. É banal, mas está mal! Quando uma sociedade valoriza a estética em detrimento da ética, é o fim da picada. Vejam os Romanos, os Gregos, os Árabes, etc.
É urgente uma ética sexual. De estética estamos nós servidos. Os anúncios de TV; os carros com beldade em anexo; as Modas; as revistas Ego, Men's Health, Maxmen (desta gosto), com os conselhos imperdíveis de como atingir o ponto G da mulher, enquanto se mantém a pose e o perfume dum Metrosexual. OK! Temos estética. E a ética!?
Só dois pontos para começar:
1 - pensar que o sexo tem só a ver com o corpo é um erro. O verdadeiro habitat natural do sexo é a alma. Sem alma há apenas ritual sexual entre macho e fémea. Sem alma temos cio. Com alma há sexo no sentido profundo que Deus sempre quis: Sexo em que há encontro de corpos e osmose de almas. Para isso há que haver uma transcendência dos corpos, para que o encontro seja ao nível dos desejos, dos sonhos, dos ideais, dos maneirismos ... e porque não das fantasias. Pois falar de sexo é falar de fantasias. Se não houver esta ética do sexo, temos apenas massagem de corpos e ginástica de mentes. Se não houver ética de sexualidade nunca se concretizará a promessa de Génesis: "os dois serão uma só carne".
2 - pensar que o sexo tem só a ver com a alma é também um erro. Somo seres totais. O local onde revelamos mais a nossa esquizofrenia é na cama. Por isso, uma estruturação completa do ser será sempre a missão de qualquer crente. Precisamos agir como seres totais na cama. Temos alma e corpo, e no sexo estas duas esferas da personalidade fundem.-se mais profundamente. Os sentidos do tacto, do olfacto, da visão, do gosto e da audição estão em alerta máximo. Mas, serão estas nossas capacidades sensoriais apenas do reino físico? Ou meramente de ordem espiritual? Certamente que não. Eu "sinto" um por do sol com a visão e com a alma de poeta e artista; eu sorrio debaixo da chuva de verão com o olfacto que me traz a terra molhado aos sentidos, e com a alma plena de felicidade pela beleza da vida. Ora, a plenitude dos sentidos expressam-se como nunca quando se faz amor. É a alma em deleite, experimentando todo o potencial de ser alma. O genuíno prazer é sempre uma experiência de conjunto: alma e corpo. O cristão não é Platónico.
Resumindo: nem a mecânico do sexo, nem a beatificação sexual são alternativas para o cristão.
Samuel Nunes



Quatro patas e um bom coração

Por cada três ou quatro simples palavras que debito acodem-me à língua como mosquitos ao vinho punhados de palavras maliciosas e murmurantes”.

Cervantes coloca esta frase na boca de um cão. Numa noite dois canídeos são surpreendidos pelo inesperado dom da fala, que resolvem aproveitar num animado colóquio filosófico. Entre tantos detalhes narrativos que revelam nas suas memórias, os quadrúpedes reflectem sobretudo sobre as misérias humanas. Adequa-se pensar que quando as palavras dos homens já não são suficientes para a penitência, só os animais nos podem vir em auxílio. Para além da oratória espirituosa, os cachorros de Cervantes são humildes pecadores em contrição. A confissão da maledicência. Quatro patas e um bom coração.
Na reunião de oração de quinta-feira da Igreja Baptista de Moscavide, o pastor estimula os crentes à oração. Numa prece alongada, uma irmã descreve situações com pormenor e detalhe científico. Ao chegar ao fim, emociona-se. Quando diz “tu conheces tudo, Senhor” já a sua voz vacila evitando o choro. Contradição sublime. Enquanto fazia o ponto da situação espiritual alheia a irmã teve precisão técnica e eficácia lógica. Termos apropriados e discurso fluente. Abeirando-se daquilo que se julga serem as suas próprias angústias, encontrou na linguagem não uma ajuda mas um estorvo. Sem tradução simultânea deixou que fossem as lágrimas a interpretar apressadamente o que a língua não deixava pronunciar.
A importância de “dar testemunho” é incontornável na cultura protestante. O termo é batido e até as criancinhas em idade pré-escolar conhecem a expectativa que cai na sala de oração quando aquele irmão que andou na droga se levanta pela primeira vez para ir à frente falar sobre o seu encontro com Jesus. E se é certo que somos tímidos na nossa ausência de confessionários, volta e meia a catarse vem no desabafo público do pecado privado. Pena é que tantas vezes o entendimento do testemunho redunde numa propensão para a tagarelice.
Nós, evangélicos, somos prósperos em detalhes técnicos: a diferença entre adoração e louvor, a distinção entre conversão e santificação, a nuance de pedir e o pormenor de interceder, entre outras bentas minúcias. Enquanto olharmos para a comunicação como se de um quadro de palavras cruzadas se tratasse permaneceremos no nível lúdico de charadas silábicas. Pequenas crianças a juntar vogais com consoantes. Mas acontece que o evangelho é muito mais do que jogos de vocábulos.
Já Tiago dizia que a língua era fogo. Terão Derrida e Wittgenstein ido tão longe? Entre atear incêndios e servir de bombeiros, as possibilidades comunicativas são diversas. E nem precisamos de voltar à excelente proposta de Cervantes na eloquente parelha canina. É o evangelho de Lucas que afirma que ao nosso silêncio as próprias pedras clamarão. Desde moderar a maledicência a reaprender as virtudes do silêncio, de ser testemunhas capazes a confessar os nossos pecados, já temos trabalho de casa que nos chegue.
Tiago de Oliveira Cavaco