sexta-feira, janeiro 30, 2004

[Sem titulo]
É triste quando carregamos o Velho Testamento como se fosse um peso morto nas nossas Bíblias. Aquelas páginas brancas que muitas vezes dividem esse Antigo do Novo não terão sido inspiradas divinamente. Mais do que uma simbólica cisão cronológica, mais do que manifestação da novidade de Jesus Cristo, mais do que o novo pacto, seremos quase todos réus por olharmos para essas alvas folhas como o branquear de uma consciência divina cruel. É esse o termo que passa furtivamente nas nossas cabeças e que tentamos ignorar: “cruel”. Assim é o Deus do Velho Testamento; o do Novo terá sido “amaciado” pelo Filho amoroso morto na Terra.
O Deus de Abraão, Isaac e Jacob não é o Deus de Jesus, Pedro e Paulo. O Deus do Deuteronómio não é o da Graça. Esse primeiro é cruel, é injusto e nós seremos todos réus por cada vez que não esclarecermos a perturbante ideia que nos passa pela cabeça, por mais breve que seja, por mais perdida que a façamos nas folhas brancas.
Espero que os mais desatentos não se percam nas minhas palavras. Aliás, é contra o destrinçador pensamento prenunciado que agora escrevo. Se o faço assim é porque me aponto o dedo, mas também o ponho numa ferida que não é minha, é de muitos mais. Protestantes, católicos e ateus se espantam com a “ferocidade” do Deus antes de Cristo. Uns censuram gritos de guerra bíblicos, outros dogmatizam parcelas para relativizar a verdade do que sobra. Alguns usam este argumento como arma de arremesso contra o gnosticismo. Ainda muitos excomungam-no com “relevável” anti-semitismo.
A leitura da Bíblia à luz do Espírito Santo deveria ser o conforto necessário a estes nossos achaques, mas confrontar o Espírito com os indicados protestantes, católicos e ateus (muitos grupos mais se poderiam referir), seria de uma confusão babélica. Não deixa de ser o melhor argumento que tenho e aquele que me convenceu, logo também seriam muitas as frases para contornar explicativamente o meu “esclarecimento do esclarecimento espiritual”. Neste espaço as palavras querem-se curtas, mas eu hoje prefiro que sejam duras:
Nada somos em comparação com Deus. Seremos ainda menos, mais mesquinhos e desprezíveis, se tentarmos moldar Deus a partir do nosso entendimento, a partir das nossas opiniões. Reduzi-Lo a conceitos humanos só nos deveria ser permitido na necessidade de exprimir metaforicamente louvor e adoração. Como poderemos dizer que Deus é cruel se Ele está acima do paradigma da crueldade, está acima de qualquer palavra que nos permitiu ser inventada? Estou a pensar que merecemos ser fulminados se aplicarmos ao Velho Testamento a mesma repulsa com que olhamos para as ensanguentadas notícias do Telejornal à hora do jantar. Mais ainda, como poderemos olhar para Deus e achá-Lo injusto sem estarmos a cair na imbecilidade de considerar que o nosso conceito de Justiça é mais importante que as escolhas e acções divinas. Se somos realmente crentes em Deus, então antes de tudo temos que estar preparados para considerar o nosso Senhor de absoluta, inalterável e inquestionável perfeição, estando acima de todo o conhecimento, todos os valores, todos os nossos minúsculos conceitos (e preconceitos). Talvez assim consigamos ler as Escrituras questionando-nos a nós e não a Deus. Retiro o último “talvez”. Falo com certeza.
Já que referi as investidas ateístas, deveria direccionar parte do meu discurso para um entendimento que lhes fosse acessível , mas aqui tenho que invocar o que já escrevi sobre os homens naturais e espirituais (primeiro número dos animais evangélicos) falados por Paulo na primeira carta aos Coríntios. Apesar de previsível, é quase exasperante que acusem o nosso gnosticismo de falta de inteligência sendo nós a única parte que entende os argumentos da outra.
Refugiava-me na falta de espaço para a brevidade da minha intervenção explanadora, só que não resisto a um pequeno exemplo onde, asseguro já, não estou a querer politizar o assunto. Apenas me suscita algum desapego serem as pessoas que criticam a beligerância intervencionista do Deus “ocidental”, as mesmas que desculpam os regimes fundamentalistas. Alegam que esses povos têm uma cultura e uma religião que não se coaduna com valores como a Liberdade e a Justiça; é lá com eles terem um Deus mau. Aqui no ocidente gostamos é todos do bom e pacífico Jesus. Será que se esqueceram que Ele é filho do Senhor do Antigo Testamento?
Samuel Úria