Pelo que tenho escrito neste espaço acho-me terrivelmente nostálgico. Cada vez que me sento em frente do computador não tenho tempo sequer para me sentir com falta de inspiração, aparecem-me logo coisas do passado que apetecem dissecar. Antes de considerar se são um bom assunto ou não, já os dedos cairiam, saudosistas, no teclado.
Esta semana tentei usurpar qualquer traço da herança genética que me pudesse advir da mãe da minha mãe. Bastou-me recordar a melhor contadora de histórias que conheci para ter eu também que contar. Literalmente cresci com fábulas de La Fontaine na mão e com fábulas da minha avó nos ouvidos. Quase kafkiano, era dela o conto de um rapaz que tinha na testa, não se sabe como nem porquê, gravada a palavra “protestante” e por isso era troçado. A moral da narração chegava com o miúdo a orgulhar-se da esquisita inscrição e eu, pequeno e inocente, não desconfiava da simplicidade daquele final. Continuava a ser, mesmo assim, a mais estranha das histórias da minha avó, um bocado disparatada até para o neto de 5 anos.
Despreocupado por não ter nada na testa, provei também ter pouco na cabeça. Ignorei na infância um passado de perseguição religiosa e instaurei uma sobre mim. Era tão fácil ser-se aceite como “Protestante” nos anos 80, mas era-me tão difícil aceitá-lo. A verdade traduz-se na execrável equação que relaciona a facilidade com laxismo. Quando nos damos conta disso temos uma mínima ideia (infimamente mínima) dos remorsos de Pedro ao terceiro canto do galo.
Que hei-de pensar eu? A geração dos meus avós sofreu afrontas, ameaças, foi escorraçada e perseguida, mas falava do Evangelho como se não houvesse amanhã. Mesmo assim sentia-se culpada por não gozar da temeridade dos primeiros cristãos. Que hei-de pensar eu, de mim e da minha geração, perante “tão grande nuvem de testemunhas”?
Admito a minha preocupação com a abertura de que gozamos hoje. As facilidades e a liberdade de expressão do jovem evangélico estão a manifestar-se num assustador fenómeno: o do surgimento da nada cultural “cultura evangélica”. Quando imagino o orgulhoso rapaz com “Protestante” desenhado na testa, não penso no jovem evangélico que tem um peixinho tatuado nos ombros ou nas costas. Acredito que a Graça de Cristo nos basta, mas não me parece correcto o sistema da referida cultura evangélica: abstrai-se do mundo para se deleitar numa “relação cor-de-rosa” com Deus. Custa-me que o Senhor seja usado para uma pública satisfação da volúpia sentimentaloide. Custa-me que a intimidade com o Criador esteja a ser confundida com o uso litúrgico da linguagem íntima de xaroposa descrição dos sentimentos. Custa-me que se amaldiçoe a intelectualidade secular e privilegie uma confortável e imperturbável troca de demagogias.
Ser evangélico sinonimizou-se com ser amesquinhador. De perseguidos passamos a perseguidores. Contentamo-nos em apontar ou ignorar o cisco no olho do outro santificando a trave espetada no nosso. Não nos sentamos na roda dos escarnecedores mas com todo o gosto formamos uma de ignorantes. Não nos deixamos corromper pelo mundo, mas não nos corromperemos pelas nossas concupiscências religiosas?
Ao converterem-se, os meus avós deixaram de ir ao cinema por acharem-no imoral. - os jovens evangélicos alugam o “Advogado do Diabo” e o “Matrix” para discutirem a perigosidade das entrelinhas.
O meu avô, pela sua reverência, repreendia-me se fazia o mínimo ruído na igreja; reverente também cantava deliciado os velhos hinos acompanhados a órgão - os jovens evangélicos empreendem demandas para conseguir instrumentos ruidosos nos cultos e fazem dos ritmos das músicas questões teológicas.
A coisa mais absurda que alguma vez ouvi da minha avó, afinal não o era, e tratava-se da história de um menino com “Protestante” gravado na testa - em acampamentos de jovens evangélicos talvez se conclua que Paulo poderia ter discursado no Areópago mesmo só tendo lido teólogos brasileiros que escrevem para a juventude.
Sei que a Fé produz esperança e que não ignoro a projecção futura dessa realidade, mas como é que eu, na minha consciência religiosa, posso deixar de ser nostálgico?
Samuel Úria