sexta-feira, janeiro 09, 2004

O governador olhou para Policarpo de pé à sua frente. Não lhe agradava a ideia de condenar à morte alguém que não era um violador, ladrão ou que não tivesse tido algum tipo de comportamento criminoso. Custava-lhe, de alguma forma, ser o responsável por dar a ordem a uma execução por não-conformidade. Ao olhar aquele velho, que tivera uma vida exemplar, que durante toda a vida foi um cumpridor da lei romana, apreciado pela comunidade, o governador não foi capaz de reprimir um sentimento de repulsa perante a tarefa ingrata que o esperava.
O estádio estava cheio. Desde que o imperador tinha restringido os combates de gladiadores, devidos a custos cada vez maiores, estes julgamentos públicos tinham tomado, em boa parte, o seu lugar. E os animais ferozes despedaçando os corpos dos auto-intitulados mártires, ou as crucificações, ou o cheiro da carne queimada de corpos ainda vivos, tornaram-se uma atracção importante na cidade.
E que importava se os homens e mulheres, que morriam por se negarem a amaldiçoar um tal Cristo e a jurarem pelo imperador, eram seus vizinhos, amigos? Todos sabiam que aqueles cristãos eram canibais, usavam a magia e bebiam sangue humano. Além disso, todos tinham ouvido falar de que nas suas reuniões secretas apelidavam muitas vezes a própria divindade imperial como demónio. Todos sabiam que aqueles ateus eram de uma perversidade repulsiva.
Policarpo, o bispo de Esmirna, olhava de frente, sem tremer, o governador. Este disse-lhe
- Respeitai a vossa idade.
tentando, assim, demover Policarpo de confessar a sua fé cristã. Deixou-se ficar uns momentos em silêncio. Depois, aumentando a força da sua voz, gritou, furioso
- Jurai pelo genius do imperador. Renegai! Dizei: Fora com os ateus!
O velho, mantendo uma expressão calma, olhou em volta para a multidão onde reconhecia todas as caras, mas onde já só encontrava esgares de ódio. Lembrou-se dos momentos às mãos dos carcereiros, dos ferros em brasa e das pancadas da tortura.
Policarpo, dirigindo-se para os que assistiam ao julgamento, gritou
-Fora com os ateus!
-Blasfemai e deixar-vos-ei ir. Amaldiçoai Cristo!
gritou o governador em resposta.
Uns metros atrás do velho bispo, um grupo dos seus irmãos de fé, cheios de feridas e gemendo os ossos partidos dos momentos prévios de tortura, oravam silenciosamente. Talvez pensassem se seria mesmo necessário morrer, se seria isso que Jesus quereria. Talvez o pecado de renegar a Cristo pudesse ser apagado mais tarde, pela Graça de Deus.
- Fui seu servo durante oitenta e seis anos, e nenhum mal ele me fez. Se vos iludirdes ao ponto de pensar que jurarei pelo genius do imperador, e se fingis não saber quem sou, escutai e dir-vos-ei: Eu sou Cristão!
A multidão no estádio rejubilou e os insultos caíram sobre a face serena de Policarpo.
Nessa tarde morreram mais cristãos além do velho bispo. Uns, incluindo Policarpo, foram queimados vivos. Outros foram amarrados em sacos e expostos à fúria de touros bravos. Houve ainda aqueles, em menor número, que renegaram a Cristo e juraram pelo imperador mas, desses, não nos ficou a história.
João Leal