sexta-feira, janeiro 30, 2004

A Apologia do Consenso
As conclusões provisórias ou definitivas, as opiniões formadas, os pareceres, as avaliações, os remates finais de uma conversa são ouro sobre azul, pérolas preciosas, raios de sol, gotas de água de que nós precisamos como do pão para a boca.
Perdoem-me o desabafo, mas vivemos tempos em que raramente se tem o privilégio ou o prazer de se assistir ao fim de uma discussão da qual de facto os participantes saiam mais esclarecidos do que entraram, seja lá acerca do que for. Parece que está na moda acabar as conversas com a constatação de que o assunto tratado é realmente complicado. É quase sempre esta a conclusão "politicamente correcta" e como tal, a única permitida.
Não sou de facto um "conclusionista” que pensa que uma conversa em que não houve uma palavra final foi necessariamente incompleta ou inútil. Compreendo quão prejudicial pode ser e tem sido o facto de muitas vezes se sentir a necessidade de rematar sempre qualquer conversa com "conclusões a martelo", falsas sensações de consenso muitas vezes falhas na sua validade e aplicação.
Contudo, tenho também sentido que como reacção a esta realidade e por outros factores que passarei a referir, temos muitas vezes vindo a cair no extremo oposto.
É espantosa a facilidade e a frequência com que numa discussão as pessoas se contentam em concordar que discordam, dando assim a discussão por encerrada. Quando um dos intervenientes pretende chegar a alguma conclusão conjunta e consensual, rapidamente se catalisa o final da conversa.
Neste ponto, é necessário salientar que muitos factores podem influenciar o decorrer de uma discussão ou de um debate. São determinantes factores como a capacidade de diálogo, o respeito pelas opiniões contrárias, uma atitude de procura sincera e uma mente aberta, regada com a indispensável boa educação. Estes requisitos comportamentais garantem meio sucesso de uma discussão. A outra metade é garantida pela combinação destes factores com a aceitação intelectual da validade do debate pois de nada serve a alguém ter todos estes predicados se desprezar seja por que motivo for a intenção do debate. Hoje, concentrar-me-ei apenas nos argumentos que levam as pessoas a assumir que não vale a pena tentar chegar a qualquer conclusão numa conversa, discussão ou debate.
Existem na minha opinião dois motivos principais (pela sua frequência) para as coisas tomarem este rumo. 0 primeiro tem a haver com o desânimo, ou se quiserem a falta de paciência de que todos sofremos sempre que estamos perante alguém que sentimos estar a léguas do nosso pensamento seja por princípios, conceitos ou vocabulário diferentes, ou por ignorância ( do nosso lado ou do outro). Neste caso faltam-nos as forças para a tarefa ciclópica que nos espera antes de termos bases comuns que nos permitam chegar a alguma espécie de consenso.
0 segundo motivo que catalisa o fim das conversas e discussões tem a haver com o facto de ser comum a ideia de que não devemos tentar chegar a uma conclusão porque isso não é sequer possível. Neste ponto, emerge rapidamente um misto de cepticismo e de argumentos pluralistas. Interessa perceber até que ponto esse cepticismo e esses argumentos merecem a nossa aposta.
A questão central é a seguinte: definindo o tipo de assuntos, será que duas pessoas que tentem ser razoáveis numa discussão têm a garantia de chegar a algum consenso?
Entendendo como consenso qualquer tipo de conclusão conjunta, seja definitiva ou provisória que resulte de uma confrontação construtiva de ideias e que represente de algum modo um avanço no esclarecimento da questão que se debate, começarei por tentar definir quais os tipos de assuntos passíveis de consenso, admitindo portanto que existem assuntos nos quais este não é possível.
Mesmo sem necessitar de assumir uma ética utilitarista, podemos constatar que geralmente, os assuntos nos quais o consenso não é possível, são também aqueles em que este não é necessário. Um bom exemplo é o facto de que dificilmente alguém me conseguirá convencer de que o amarelo não é a cor mais bonita que existe. (Não pretendo ignorar a discussão estética acerca do significado do belo, mas assumirei apenas para o propósito deste ensaio, o "bonito" como sendo o agradável, que nos fascina à vista). 0 amarelo é uma cor extremamente agradável à minha vista e sejam quais forem as causas, ninguém poderá negar este fascínio. Este é um assunto em que o consenso não será possível. Um adepto do azul, será igualmente difícil de demover pois independentemente do que lhe possamos dizer ou fazer, a cor azul continuará a fasciná-lo pela sua agradibilidade. No entanto, não existe sequer a necessidade de consenso nesta matéria.
0 elemento que marca a transição para a necessidade de um consenso é sempre a presença de uma opção. Optar significa escolher uma consequência. Sempre que fazemos esta escolha estamos a recorrer a um conjunto de princípios que temos e que usualmente regem as nossas opções. As consequências são avaliadas por apelo a um sistema de valores que todos nós possuímos e ao qual recorremos independentemente do grau de consciência que temos acerca de quais os valores ou princípios implícitos na nossa escolha. É aqui que reside a necessidade de um consenso sempre que em conjunto fazemos uma opção : temos de concordar na aceitação das consequências!
Vivemos numa época em que se dá (e correctamente) um grande valor aos direitos do homem dos quais o direito à liberdade e autodeterminação é um dos mais inalienáveis. Contudo, este facto (ele próprio resultado do apelo a um sistema de valores), muitas vezes nos leva a ter medo de estar a violar o direito de liberdade de uma pessoa ao afirmar que uma pessoa pode estar errada. Esta visão peca no entanto por não fazer a distinção entre o afirmar que a pessoa está errada e o forçar a pessoa a aceitar a nossa visão. Isto sim, seria violar a sua liberdade.
Como cristão, acredito que existe de facto a necessidade de afirmar e até proclamar a realidade correcta. Existe um bem! Existem absolutos de mal e de bem, de certo e errado, justo ou injusto. Pela fé, o certo é fazer as coisas como Deus planeou que elas fossem feitas e como tal, existe uma maneira certa de encarar qualquer assunto (por mais sério ou pessoal que ele seja) em que sejamos chamados a optar ( mesmo que uma opção certa possa assumir várias formas de resolução).
Não se trata de uma necessidade de julgar os outros. Não se trata também da necessidade do perfeccionista de catalogar tudo em categorias de certo ou errado, de completamente bom ou completamente mau. Aceito a realidade da incompletude dos estados.
À afirmação de que cada contexto tem a sua realidade, respondo com a convicção de que na sua maioria, as pretensas realidades múltiplas não passam de evoluções por isolamento, palavras que adquiriram novos sentidos, construções divergentes de conceitos que divergentes se acumularam. Tudo isto conduz à generalização abusiva de que a realidade é múltipla e de que a única saída para a preservação da vida é a tolerância. A única verdade central do universo é que não existem verdades centrais. Contudo, se passarmos tempo suficiente com uma pessoa que vem de um contexto diferente facilmente constatamos que através do exercício paciente do esclarecimento de conceitos e de estabelecimento de linguagem comum ambas as realidades se fundem na medida do nosso empenho nessa fusão. É o que aliás fazemos sempre que uma relação é importante para nós - tentamos encontrar consensos.
A falácia pluralista da ausência de absolutos nega-se a si mesma ao afirmar que o único absoluto que existe é o facto de não existirem absolutos. É proibido proibir!
Além de frágil na sua construção, o pluralismo é também antagónico à natureza da própria vida em sociedade. Parece-me impossível que alguém consiga viver o pluralismo na sua plenitude levando-o às suas últimas consequências. Senão vejamos: se eu assumo que cada pessoa tem a sua realidade e tem o direito viver em conformidade com ela, eu terei também de assumir que embora para mim seja errado roubar, eu não tenho o direito de exigir a mesma conduta a mais ninguém. Se eu for fazer um depósito num banco e depois de algum tempo, ao tentar levantá-lo o caixa me responder: "eu aceito que o senhor acredite que tem direito a receber o seu dinheiro, mas na nossa realidade, a partir do momento em que os depósitos são feitos, o dinheiro passa a ser nosso”, que poderei eu responder perante esta lição de economia relativista? Rapidamente constataremos que este relativismo é caótico, e contrário à existência de qualquer tipo de sociedade, pois estas constroem-se precisamente a partir de acordos. Se um casal de namorados optar por não chegar a consensos, rapidamente entra em ruptura, pois existem decisões em que as consequências serão para ambos.
Assim, assumindo uma realidade una e independente das nossas sempre incompletas apropriações dessa realidade, assumimos a existência de absolutos que (para mim, cristão) serão os absolutos estabelecidos por Deus. Embora o caminho até um consenso possa ser árduo, ele é também possível e portanto, desejável !
Para duas pessoas razoáveis, que assumem uma postura de diálogo construtivo na procura de entendimento comum, não existe razão para um cepticismo que tão frequentemente inviabiliza as construções. A questão não é se é possível chegar a um consenso, mas a distância que ainda tem de se percorrer até lá chegar e, obviamente, se vale a pena o esforço.
Na minha opinião, por mais pequeno que seja o consenso, é válido e por mais provisória que seja a construção, é preciosa!
Tiago Branco