Antes de ser uma questão de estética foi uma questão de princípio. Fui educado quase como um iconoclasta bizantino - por isto não escondo a reviravolta no estômago de cada vez que passo pela banca dos quadros e pinturas na feira de Tondela.
O anatematizar certas representações religiosas acabou por fundamentar-me bem cedo convenientes pruridos pelo gritante mau-gosto. Obviamente excluo as “obras de Arte” do rol a que tecia imprecações; se o artista é bem sucedido , por muito que lhe encomendem “objectos de veneração” ele irá produzir “objectos de admiração”. Panteísmos à parte, a haver alguma Arte digna do nosso ajoelhar será apenas a feita em 7 dias pelo Artista Supremo. Quanto muito permito-me comover frente ao tecto da Capela Sistina do Miguel-Ângelo ou estarrecer perante a Guernica do Picasso. Já na feira de Tondela não há Arte e aí permito-me nausear com oxigenados Cristos, corações flamejantes e aureolas ao desbarato.
Agora, enquanto evangélico desde quase sempre (os irmãos calvinistas que perdoem o “quase”), guardei numa memória algo turva certa famosa gravura com a qual identifico diversos lares protestantes que conheci na infância. Via-a em normais quadros, em pequenos relevos emoldurados ou até mesmo incrustada em mealheiros duma campanha de oração: duas mãos unidas numa indiscutível atitude de reverente prece constituem a imagem que eu aprisionava num universo exclusivo de casas evangélicas. Foi preciso já ir tarde na adolescência para tais mãos saltarem para o meu livro escolar de História da Arte. Não houve qualquer tipo de decepção ao ver discutida numa sala do liceu a obra que subliminarmente me simbolizava uma realidade muito mais pessoal - apenas deixei-a cair numa quase frieza académica. Porém havia que valorizar as “Mão do Apóstolo” de Albrecht Dürer e era um gosto observar mais aprofundadamente o exemplar artista. Para meu desconhecimento, a professora liceal de História de Arte ficou, na altura, muito aquém no esclarecimento desse génio pos-renascentista (ou pré-maneirista, se preferirmos). Cingindo-se aos pormenores técnicos, espírito engenhoso, imaginação apurada e a suposta amizade com o nosso Damião de Góis, não era pelo discurso dela que estaria a chegar o meu deslumbramento:
Há um par de anos, exactamente numa casa de familiares também evangélicos, reencontrei uma pequena reprodução em relevo das “Mãos do Apóstolo”. Ao identificar quase displicentemente a obra, a dona da casa olhou-me com um sorriso e perguntou-me se conhecia a história por detrás dessas mãos. Não recordava de me terem ensinado tal coisa na escola por isso pedi-lhe o relato. Resumidamente, começava com uma família pobre e numerosa na qual 2 filhos, Albrecht e Albert, desejavam ser artistas. Infelizmente não havia dinheiro para ambos estudarem o que ambicionavam. Num Domingo, chegados da igreja, os dois irmãos da família Dürer tomaram a decisão de sustentar-se mutuamente no seguinte esquema: durante 4 anos Albert trabalharia numas minas para sustentar Albrecht que iria para a Academia de Artes de Nuremberga. No fim desse período trocariam de funções.
Por meses e meses Albert labutou arduamente nas minas, enquanto Albrecht fazia furor na escola, suplantando os seus próprios mestres. Quando os 4 anos passaram, o artista regressou, como combinado, para efectuar “a troca”. Contudo, em lágrimas Albert mostrou as mãos ao irmão, mãos endurecidas pelo trabalho pesado, mãos defeituosas e magras, dedos partidos e inutilizados pela dura vida que o tinha acompanhado nos últimos tempos. Albert jamais poderia ser um artista e Albrecht, sentindo-se limitado para retribuir, condenou aquelas mãos feias a serem uma das mais bonitas figuras de sempre.
Era tudo.
Uma história triste depois e eu ,por curiosidade (ou por aquele factor que às vezes nos leva a ficar no sofá e condescender com os enredos das telenovelas), decidi saber qualquer coisa mais sobre o artista. O que descubro é surpreendente: Dürer foi um dos primeiros protestantes, extremamente admirado pelo próprio Lutero que publicamente chorou a sua morte.
Uma história triste depois e a figura “Mãos do Apóstolo” (mais conhecido como “Mãos de oração”) tinha recuperado da frieza académica congelada na minha cabeça desde o 11º ano. Quando me ensinava que o alongamento e a defeituosidade dos dedos se devia aos naturais amorfismos da corrente maneirista, a minha professora de História de Arte do liceu estava a cometer um erro, no mínimo, sentimental.
Aqui não há morais da história. Talvez eu me tenha cingido a um discorrer inútil sobre memórias. É provável, mas há coisas não necessariamente importantes com as quais identifico o meu protestantismo básico, sejam elas bancos de madeira, capas de antigos hinários ou as mãos do Dürer.
Digo “não” à “sacralização da Arte sacra”, digo o mesmo a qualquer promiscuidade entre culto e imagens, mas para a minha nova casa em Tondela já me imagino a agradecer a Deus a refeição com uma reprodução das “Mãos de oração” na parede atrás de mim. Do outro lado da cidade, e isto é mesmo verdade, a banca dos quadros e pinturas da feira local estende-se mesmo em frente da casa da minha professora de História de Arte do Liceu.
Samuel Úria