sexta-feira, abril 30, 2004

[Sem título]
Sou daqueles que está longe de pensar que a televisão é apenas rádio com imagem, ou que a televisão é mais completa que a rádio precisamente por recorrer a uma componente da realidade tão importante quanto a da imagem. Pelo contrário, acho que são meios com características diferentes e até mesmo com públicos um tanto diferentes. Tenho mesmo tendência a apreciar mais o trabalho que se faz na rádio, precisamente por que a falta da imagem tem de ser obviada com o recurso a outro tipo de artefactos e habilidades. A publicidade é um dos campos em que se nota mais o quão engenhoso é o mundo da rádio. Há, sem dúvida, excelentes anúncios a circular que sabiamente substituem a ausente imagem.
Tudo isto para dizer que, como ouvinte relativamente assíduo da rádio portuguesa, fiquei há algum tempo chocado com um anúncio que surgiu propagandeando determinado serviço prestado pela conceituada marca automóvel Mercedes. Nada me move contra todos aqueles a quem a vida tem permitido comprar e sustentar um Mercedes, até por que muitos destes automóveis chegam do estrangeiro a preços relativamente módicos, tanto quanto sei. Seja como for, o que me chocou foi ouvir a determinado passo do anúncio uma criança a perguntar ao pai se quinhentos euros não era muito dinheiro, ao que o pai responde de forma despreocupada: “Não! Não é muito dinheiro”. Retirando todos os relativismos e ambiguidades possíveis em relação ao valor real do montante em causa, a verdade é que não é qualquer português que tem a referida quantia para pagar mensalmente em troco de um serviço que a marca oferece. É arrepiante a ligeireza com que muitas vezes se tratam estes assuntos, apercebendo-se ou não os seus autores que tais insinuações – seja num anúncio ou em qualquer outro contexto – é humilhante para milhões de portugueses para quem quinhentos euros é precisamente todo o salário que levam para casa ao fim do mês e para muitos outros um valor que desejariam um dia chegar a alcançar.
Num país em que existem centenas de milhares de desempregados, salários em atraso, pensões miseráveis, já para não falar daqueles que se podem dar ao luxo de dizer que não foram aumentados este ano – quer isso dizer que mantêm o seu emprego – este tipo de “brincadeiras de mau gosto” não deveriam tomar tal destaque. Não sou adepto da censura, nem acho que esta ou qualquer outra marca não tenha o direito de comunicar com os seus públicos da forma que acha mais eficaz. No entanto, não me é possível calar a indignação perante tais apelos a este tipo de luxos que passam por cima de tantas e tantas cabeças no nosso país.
É nestas ocasiões que consigo vislumbrar como Jesus foi tão diferente do status quo vigente, na sua passagem pela terra. Sem falsas hipocrisias ou discutíveis evangelhos sociais a verdade é que me interrogo se os cristãos estão efectivamente preocupados pelos desprezados da sociedade. E estes não são apenas as vítimas de racismo, de violência doméstica, os toxicodependentes, sem-abrigo ou marginais. São todas aquelas pessoas que se esforçam honestamente no seu dia a dia por conseguir levar para casa mais ou menos que quinhentos euros por mês, isso pouco interessa. Homens e mulheres que literalmente se matam a trabalhar para que os seus filhos e outros dependentes possam ter o mínimo de dignidade na vida. Depois queixamo-nos que em Portugal a família não dá apoio às crianças, adolescentes e jovens, queixamo-nos do abandono escolar, do trabalho infantil e de tantas outras maleitas de que o nosso país continua a sofrer. Evitando generalizações perigosas, arrisco dizer que certamente esses milhões de trabalhadores honestos nunca vão sequer ambicionar ter quinhentos euros por mês para pagar um serviço de um carro que nunca terão. Para eles quinhentos euros é muito dinheiro!
Timóteo Cavaco