sexta-feira, abril 09, 2004

Do restaurante para o calvário
Os evangélicos têm o hábito de dividir os actos humanos entre aqueles que edificam e os outros. No meio desta aritmética bem intencionada para além de uns atropelos ocasionais, de uma dose relevante de incompreensão, e até um tímido convite a uma simplificação perigosa, existe um desejo de pedagogia. Para a vida. E isso é muito bom.
Devo afirmar que das bênçãos do último ano, o convívio com bons interlocutores católicos destaca-se. Conheci o João, o Rui, o José, o Miguel e o Carlos. Partilhei com eles mesas de restaurantes. Sem hóstias e púlpitos, sem preces e paramentos. Continuo um saudável anti-ecuménico. Mas um entusiasta da inter-confessionalidade (o meu primo, Timóteo, aqui de cima, foi o primeiro que conheci a usar o termo desta forma). E agradeço a Deus por tudo o que tenho aprendido com os meus novos amigos.
Uma das coisas que tenho admirado nesta mão cheia de bons cristãos é a seriedade do seu pensamento. Ajuda-os, é certo, a tradição romana com disciplinas como a meditação. A sua instrospecção é para mim inspiradora. Esta Páscoa será em muito diferente graças ao exemplo da fé que deles tenho recolhido.
Nesta sexta-feira recai sobre a cristandade uma séria responsabilidade. A memória da morte do seu Senhor não é tarefa fácil. Talvez pela primeira vez na vida tento fazer destes três dias uma reflexão profunda sobre a importância do que aconteceu. Começo aos 26 anos. Podia ser pior.
Paralelamente, as banalidades que se dizem sobre a morte e a ressurreição não precisam de defensores. Já há muito que ganharam o seu próprio espaço. Desde discípulos gaguejantes a revolucionários de serviço, todos têm uma palavrinha sobre o valor universal destes acontecimentos. Um Jesus para todos, dizem, para os que crêem e para os outros. Como se a fé fosse uma jornada de reflexão sobre o buraco de ozono promovida pela Junta de Freguesia de Corroios.
A cruz é inescapável. Não me parece local para arroz-doce e boas intenções. Símbolo de fé para muitos, sinal de vergonha e desprezo para muitos mais. O sacrifício do nosso Senhor não pode ser materializado numa colectânea de soluços filantrópicos para um mundo em crise. Os cobardes raramente derramam o seu sangue.
Não nos orgulhemos por estar do lado dos crentes. Reviver a páscoa nesta banda deveria lembrar-nos dos varapaus, do beijo, do chicote, da impotência para defender o Mestre, da visão horrível da sua morte, do medo, da ausência de perspectivas futuras, da incredulidade, da dificuldade de reconhecer o regresso do Senhor. Passam-se melhores férias sem qualquer uma destas coisas.
Tiago de Oliveira Cavaco