sexta-feira, abril 09, 2004

[Sem título]
A imaginação da humanidade, ferida por actos inesquecíveis de Deus, não se consegue esquecer. Arrisco que algo parecido com o termo 'Arte' se possa aplicar a essa criatividade de Deus. Deus cansa-se, Deus esforça-se para que O possamos achar inesquecível. A surpresa! O espanto!
Deus, como escreve Jorge Luís Borges no seu 'Livro de Areia', preparou os factos da Sua revelação aos homens de uma forma inesquecível. A imaginação humana teria de ser ferida por toda a eternidade. Sim, o escândalo. O patético, até. Deus não se limitou a pôr burras a falar, nem anjos a esvoaçar por cima da cabeça de um monte de gente. Nem tão pouco se cingiu a aplicar recomendações espectaculares, como transformar a curiosidade feminina em sal ou matar centenas de primogénitos de uma vez.
O auge da, digamos assim, imaginação divina, está nessa ideia absolutamente revolucionária de encher a sua definitiva revelação ao Homem com o terror e o amor, numa espécie de concerto a duas mãos extraordinário.
Jesus interpreta a maior obra criativa de Deus. Ele fala de amor, de perdão, de salvação, da água da vida, faz milagres, traz alívio e cura. Há vozes vindas do Céu acompanhadas de pombas, episódios de saliva nos olhos que retiram a cegueira e de figueiras ressequidas a uma palavra. Há um passeio espectacular em cima da água e ressuscitação de mortos. Há multiplicação de pão e peixe. Há a transfiguração. Deus vai tecendo o
tapete com amor. Fornece o espectáculo, o malabarismo de simpatia e, nós, humanidade, aplaudimos todos essas vertiginosas acrobacias, contentes e maravilhados.
Mas, Jesus é traído, espancado, esquecido pela justiça dos homens, sofre na carne todo o processo de horror da crucificação e, enfim, morre. Deus marca-nos com o anúncio da traição ao próprio Judas, com a injustiça de Pilatos e do povo, com os pormenores da coroa de espinhos, do perdão de último minuto ao criminoso, com suor de sangue, com o grito lancinante antes do estertor final, com as nuvens negras a cobrirem tudo ou com o véu do Templo a rasgar-se. Que urdidura de terror ao ponto de dispersar os discípulos, de fazer crer que tudo tinha ruido! Deus, aqui, faz-nos suster a respiração, dá-nos um grande estalo na cara, murro no estômago. A sua 'arte' é também o choque. sempre para que não esqueçamos.
Mas a obra ainda não está completa. Sim, a humanidade ainda não teria sido ferida na sua imaginação por Deus se tudo ficasse por aí. Deus retoma as linhas triunfantes do amor na sua obra aquando da ressurreição de Cristo. O amor triunfa num golpe artístico e poético brutal e incontornável.
O terror fica, pode-se dizer, aprisionado entre dois maravilhosos actos de amor. Fica encaixado e já não poderá ser esquecido pela humanidade, enquanto a mensagem de amor e esperança de Deus é marcada a ferros na imaginação humana para sempre.
Para ter fé, é necessário usar a imaginação. Quem se esquece disto, mata a esperança, reduz a mensagem de Deus ao homem a qualquer coisa, sei lá o que é isso que tantos usam, inútil.
João Leal