sexta-feira, abril 16, 2004

[Sem título]
Na terra onde nasci – Tondela – existe uma tradição que foi apropriadamente relembrada no programa “Terra a Terra” da TSF no último sábado, precisamente o sábado pascal. Falo de uma iniciativa popular a que se dá o nome de “O Rebentamento do Judas”.
Não pretendo aqui explorar as implicações teológicas do tema, mas em abono da verdade, não se pode dizer que esta ideia seja completamente anti-bíblica. A verdade é que no livro dos Actos podemos ler: “Ora ele [Judas] comprou um terreno com o dinheiro que recebeu pela sua traição. Foi aí que ele caiu morto, tendo rebentado os intestinos, que se espalharam pelo chão” (1,18). Segundo o relato de Actos temos então aqui uma firme fundamentação da tradição da minha terra. No entanto, os exegetas e comentaristas não estarão assim tão seguros de que as coisas se tenham passado necessariamente dessa forma.
Parece que existem fundamentalmente duas tradições diferentes que procuram explicar esta obscura referência, tanto mais que nem se tem bem a certeza de qual seria a palavra ou expressão grega original. Temos uma primeira tradição veiculada pela Vetus Latina em que se procura harmonizar este relato com o do evangelista Mateus (27,5) e, assim, o texto deveria ser alguma coisa como “ele amarrou-se ao redor do pescoço e, tendo caído sobre o seu rosto, partiu-se pelo meio e todas as suas entranhas saíram para fora”. Uma segunda tradição, baseada nas antigas versões arménia e georgiana referem que Judas “inchando, estoirou e todas as suas entranhas saíram para fora”.
Não deixa também de ser interessante o facto de Mel Gibson pegar na figura de Judas, com significativa ênfase. Arriscaria mesmo a dizer que para além de Maria, Judas é a personagem a quem Gibson atribui mais material extra-bíblico.
Surgem, aliás, algumas cenas enigmáticas das quais destacaria as seguintes. A das crianças a zombar com Judas no seu caminho para o “campo de sangue” que, por alguma razão que pode ser meramente especulativa, me fez lembrar o episódio das crianças que igualmente haviam zombado do profeta Eliseu (2 Reis 2,23-24); o contraste aqui é entre o enviado de Deus (Eliseu) e o enviado de Satanás (Judas). Um segundo dado curioso é o do jumento morto junto ao local de enforcamento; esse animal bem podia simbolizar aquele em que Jesus tinha entrado em Jerusalém aclamado pelo povo, menos de uma semana antes.
Especulações ou comentários à parte a verdade é que a figura de Judas nos devia fazer reflectir muito mais do que na realidade o faz, para nós cristãos. Há um certo folclore envolvendo esta personagem, para muitos um mero instrumento desprovido de vontade própria, colocado ao serviço do plano redentor do Pai. Não vale a pena extrapolar o que os Evangelhos dizem sobre Judas, nem tentar conhecer o que está oculto. Por outro lado, também não vale a pena ignorar que Judas existiu e que ele fez parte do grupo seleccionado de discípulos de Jesus. A arte cristã muitas vezes encarregou-se de ocultar precisamente este facto, já que Judas é inúmeras vezes substituído por Paulo na contagem dos Doze.
A verdade é que Judas, pelo relato dos evangelhos, não parecia ser um indigente qualquer: até lhe foi atribuída a responsabilidade de coordenar as finanças do grupo o que, ainda hoje, não é uma função atribuída a qualquer um. Temos mais é que pensar em que medida a nossa ambição e o nosso protagonismo não estão muitas vezes a contribuir para que Jesus seja negado no mundo em que vivemos. Temos que apelar à nossa própria consciência e julgar-nos a nós próprios em relação às vezes que já agimos como “judas”…
Timóteo Cavaco