sexta-feira, abril 23, 2004

[Sem título]
As duas irmãs que, de joelhos, uma de cada lado de Cristo, olham para o irmão ainda envolto na mortalha . Tiveram de se ajoelhar perante a maior dor da sua vida que foi apagada. A Lázaro não se vê o rosto e a única expressão é a das mãos juntas, enfaixadas numa ligadura grossa. Está de pé e volta a ver luz após quatro dias Os pés brancos quase na sombra são ainda os pés de um morto. Mas as mãos já têm cor, talvez porque façam o gesto de devoção como quem ora. A luz incide-lhe por trás e ele é figura mais luminosa. Ao mesmo tempo, é essa luz nas costas que lhe lança a cara semi-tapada numa sombra que lhe retira identidade e expressão. Voltou da morte. Foi abençoado com o maior milagre. Já não precisa de um nome, de um rosto. Está liberto. Conheceu a Verdade, foi tocado por Deus.
Jesus está a meio metro dele. Braços esticados. Bem próximas do rosto de Lázaro, as mãos abertas como quem abençoa. Está descalço. Os seus pés são visíveis, têm cor, são vida. Veste uma túnica vermelha que recebe a luz de frente, tal como o seu rosto. Os olhos de Jesus estão fixos, concentrados no amigo por quem, talvez, ainda chore. Antes gritou 'Lázaro, sai para fora'. E é agora Jesus quem o recebe à saída do túmulo. Acaba de dizer 'Desligai-o, deixai-o ir'. Um personagem meio nu, envolto num pano vermelho, retira a mortalha a Lázaro. Está numa sombra pesada. Só se consegue perceber o seu gesto de assombro, querendo tapar a cara pelo terror que sente, num franco medo de quem obedece mas que não entende o que se passa.
Atrás de Jesus, um homem de capa negra e barba grisalha. De mãos apoiadas num bastão, talvez seja um cajado, olha o milagre como quem já está habituado. Parece reflectir. Tenta avançar no que pensa, compreender melhor. Será Pedro?
Um outro homem mais novo, ao lado do anterior, olha para Jesus, de cabeça baixa. Os olhos estão vermelhos, talvez tenha estado a chorar também. Há sentimento na sua pose. Respeito de quem ama. As suas mãos demonstram esse respeito amoroso, quase escondidas, entrelaçadas uma na outra displicentemente, esquecido de si perante o objecto da sua admiração. Penso em João.
Restam dois homens. Estão afastados ambos estão com expressões de espanto, talvez até de algum terror. Serão os judeus que antes comentaram, perante as lágrimas de Jesus, como ele amava o morto?
Excluindo o Cristo, sou todos os personagens deste quadro. Sinto o alívio da Salvação, o terror pelo miraculoso que a minha condição humana estranha, o espanto pela maravilha, o agradecimento pela Graça, a intelectualização do divino e, por fim, a entrega ao Amor. Penso isto e, ao olhar a reprodução dessa pintura do século XIX, não posso deixar de pensar na sensação de intemporalidade que o ser cristão me traz. A natureza do homem não muda através dos séculos, e a necessidade da Salvação também não.

Baseado na pintura de Léon Bonnat, 'Ressurreição de Lázaro',
João Leal