[Sem título]
No meio de mais sangue derramado pelo mundo, promessas de vingança e de destruição, no meio da dor das cerimónias fúnebres dos corpos despedaçados do 11 de Março, de manifestações de descontentamento e de tantas outras demonstrações de insatisfação, o nosso país assistiu a uma iniciativa a muitos títulos inédita. Dezenas de milhares de crianças, adolescentes e jovens em mais de duas centenas de escolas do ensino básico e secundário participaram livre, cívica e democraticamente na escrita de uma ou mais Bíblias, como símbolo da importância cultural e civilizacional deste livro que, para uma grande parte do mundo em que vivemos, se constitui como Sagradas Escrituras.
Acho que os méritos desta iniciativa vão muito além do simples significado religioso do livro que, para nós cristãos, é O Livro. Há alguns aspectos, externos à iniciativa em si mesma, que merecem algum tipo de destaque. Em primeiro lugar, este é um projecto de carácter verdadeiramente nacional, que colocou muitas escolas espalhadas pelo território nacional (Continente e Regiões Autónomas), ao mesmo tempo, a reflectirem sobre a Bíblia. Muitas iniciativas se vão desenvolvendo nas escolas ao longo do ano, mas não é muito frequente que envolvam tanta gente ao mesmo tempo, pelo período de tempo que esta iniciativa durou. É também um projecto interconfessional já que a Sociedade Bíblica chamou a si a imprescindível colaboração das entidades católica e evangélica que supervisionam a disciplina de Educação Moral e Religiosa nas escolas. Mas, para além de interconfessional, é também uma iniciativa extra ou transconfessional, já que essa também é a natureza da Bíblia. Quem conhece minimamente a própria Bíblia e a doutrina cristã, que nela se baseia, sabe que os princípios bíblicos são de edificação para os fiéis, mas também de testemunho para os que não partilham dessa fé. E, desprezar a influência da Bíblia na nossa história, cultura, arte e mesmo nas nossas idiossincrasias sociais é desprezar uma parte da nossa identidade.
Projectos desta natureza não podem ser entendidos como contra alguém ou discriminatórios, seja essa discriminação positiva ou negativa. Projectos como este mostram efectivamente que o Estado em que vivemos é plural e aconfessional, mas não o têm que ser as pessoas que dele fazem parte e que regem as suas instituições. É verdade que nem sempre os próprios governantes e agentes do Estado compreendem esta fina fronteira entre um Estado aconfessional e plural e uma militância ou não na fé e na doutrina, seja ela cristã seja outra qualquer. Porém, a magnanimidade da Palavra também passa por aí. Muitos se deliciam em seleccionar determinados trechos das Escrituras para provar não sei o quê, não percebendo que tais textos só lá existem por que a Palavra é verdadeira e apresenta o ser humano tal qual ele é. A Bíblia não é um livro necessariamente de heróis e de grandes feitos. Lá também existe morte, traição, vergonha, desrespeito e todas as restantes “virtudes” a que o ser humano se expõe. Pena que tantos esclarecidos da nossa praça ainda não tenham percebido uma coisa tão simples como esta.
Para mim, parte envolvida no processo e por isso pouco credível, devo admitir, o que mais me tocou foi ver o entusiasmo de tantos meninos e meninas separados por os mais diversos critérios que a sociedade impõe, sejam eles religiosos, económicos ou culturais, empenhados a participar num símbolo de unidade e fraternidade. E a fazê-lo num espírito de liberdade plena que só é possível pela efeméride que dentro de um mês celebramos. Se nada mais ficou desta iniciativa, que pelo menos tenha ficado demonstrado que a Bíblia é a palavra da verdadeira liberdade.
Timóteo Cavaco