sexta-feira, março 12, 2004

Meu Senhor, meu inimigo
No filme de Gibson há algo incontornável. Pode estar exagerado e inflaccionado para efeitos de sensibilidade cinematográfica. Mas o facto é que Jesus em muito foi odiado. Será habitual enclausurar o Messias nas suas palavras amorosas e nas diversas manifestações de compaixão que tomou em vida. Mas o retrato ficará incompleto se nos esquecermos que a sua missão acelerava a má relação entre Deus e as suas criaturas. Para a resolver.
O meu Senhor é em grande medida o meu maior inimigo. Isto afirma o cristianismo. Na fé dos apóstolos Cristo não vem aperfeiçoar o que de bom há nos homens. Não vem retocar os conceitos religiosos. Nem tão pouco fornecer orientações para uma vida mais equilibrada. Há um confronto profundo e destruidor. Importa nascer de novo, diz a Nicodemos, homem experiente no discurso espiritual. Esta imensa separação que é o pecado não é passível de cosméticas. E todos nós temos interiormente um apetite interno que se satisfez no sacrifício e morte física de Jesus. Naquela refeição amarga o meu orgulho e a dureza do meu coração vingaram-se.
É aqui que as coisas se tornam nítidas. O cristianismo é geralmente interessante à sociedade civil até ao ponto que se intromete com as almas. Conhecemos os pretextos. O pecado é um conceito ultrapassado. Freud explica a coisa melhor. Não é possível nos nossos dias falar em bem e mal. O inferno é um delírio. E por aí fora.
Neste sentido o filme de Gibson é apropriado. A sua preocupação desmesurada em colocar Jesus a ser sovado pelo maior número possível de pessoas sublinha a condição essencial da fé de que antes de ser nosso Salvador, o Senhor é nosso adversário. Quem não admite este ponto de partida dificilmente deixará que Jesus rasgue a ternurenta e hipócrita gravura do homem bom da Galileia.
Para mim, pessoa que procura seguir o Mestre, o que explica que de uma condição miserável de inimizade passe a outra em que Cristo aceita o convívio comigo? A profunda e inabalável certeza que o amor dele muda tudo. E que transforma a pessoa que eu mais odiei na vida naquela que mais amo.
Tiago de Oliveira Cavaco