[Sem Título]
Certamente não há maior lugar-comum, esta semana, do que falar no importante tema do aborto. Se não me falha a informação, foi esta a quinta vez, desde a Revolução de 1974, que o Parlamento e, consequentemente, toda a sociedade discutiram de forma mais objectiva este assunto. Por diversas vezes, também, fui chamado a pronunciar-me, em privado ou em público, sobre o tema e tenho até posições bastante radicais sobre o mesmo. Nesta altura, não interessará tanto dirimir argumentos mas mais reflectir, embora que sumariamente, sobre a forma como o assunto foi abordado e o tipo de razões apresentadas, mormente por aqueles que tão militantemente procuram por todos os meios alterar a presente lei. Diz o meu amigo Manuel Rainho que “imparcialidade não existe” e isso está absolutamente correcto. Assim sendo, também a minha leitura da forma como o tema foi discutido é influenciada pelas minhas convicções sobre o tema em si. Porém, deixá-lo… é isso que se quer dizer com a “imparcialidade não existe”. Ficam, assim, mais dúvidas do que certezas, mais desilusões do que ilusões, mais agonias do que novas amizades. Vou, por isso, listar um punhado de frases soltas que me ficaram a ecoar na mente ao longo destas últimas semanas.
Embora possa parecer cruel, não tenho a completa certeza de que todas as mulheres que praticam a interrupção voluntária da gravidez têm a plena consciência do seu acto e que sofrem profundamente ao tomar a decisão de abortar; questões de mero pragmatismo de carácter económico ou financeiro estão muitas vezes na origem de tais decisões. Para além disso, os conceitos do valor vida humana não são suficientes para determinar a resposta a dar, para muitos dos cidadãos e das cidadãs.
Apesar de todos sabermos que juridicamente o referendo realizado sobre a matéria não ter sido válido, e de ter sido uma escassa maioria dos que nele participaram a determinar a rejeição da alteração à lei actual, o que pergunto é se os senhores e senhoras que acham que 5 anos é tempo suficiente para o povo mudar de opinião, estariam dispostos a auscultar novamente esse mesmo povo 5 anos depois de uma eventual vitória da descriminalização; ou aí já valeria apenas o argumento “o povo decidiu, está decidido”?!
Não é verdade que o aborto seja praticado fundamentalmente pelas classes de menores rendimentos como forma caridosa de evitar que seres humanos sejam lançados neste mundo sem condições para viver uma vida digna ou, pelo menos, para passarem uma infância minimamente tolerável. A verdade é que muitos dos abortos que se praticam resultam de meros caprichos das classes abastadas.
Carece de fundamento a intimidação primária de que as mulheres que praticam actualmente a interrupção voluntária da gravidez serão lançadas em terríveis masmorras, e isto em pleno século XXI; não tem acontecido e não vai certamente acontecer, pois essa não é a prática. Estranho é que senhores tão informados não tenham visto na proposta do Prof. Freitas do Amaral o “ovo de Colombo” que ultrapassa esta questão; obviamente que tal proposta não lhes convém pois acabaria com tanta militância.
Finalmente, pergunto-me como se pode dar cobertura intelectual ao abuso de certas mulheres que despudoradamente fazem questão de proclamar que são donas e senhoras do seu corpo. Mais do que por simples convicção religiosa, acho que tal tipo de afirmação exacerba ao máximo expoente um individualismo nada saudável.
Timóteo Cavaco