sexta-feira, março 26, 2004

Quantidade desagradável de pontos de interrogação
Isto não é sobre o aborto, mas começo afirmando que, por muita volta dada ao assunto, será plural uma opinião: ninguém é favorável ao aborto natural de uma criança esperada. Se me esquivo a ironias nos primeiros parágrafos, hoje fujo à regra: quando “Deus é chamado” para justificar posições na matéria da interrupção voluntária da gravidez é um “ai Jesus”, por outro lado, se a criança esperada morre antes de nascer, exigem-se “porquês” a Deus. Mas isto não é sobre o aborto, pelo menos o eufemisticamente apelidado de interrupção.
“Os desígnios de Deus são insondáveis”. Esta frase já foi assim traduzida de tantos filmes que não faltarão teólogos de ocasião. Quase certo é dessas palavras nunca ter chegado qualquer consolo. A Simone de Oliveira, uma abortiva assumidamente abortadora, cantava que “quem faz um filho, fá-lo por gosto”. Como chegar então ao coração daqueles que, com muito gosto, queriam ser pais mas se viram desgostosamente sem um filho? A insondabilidade dos desígnios de Deus dificilmente consola a necessidade carpideira de porquês.
Retomando passados musicais portugueses, seria num politicamente pouco teísta artista que chegaria a sensatez resignada do comum popular. “Ai Deus mo deu, ai Deus mo levou” do Zeca Afonso não espelha amargura, antes imerge-nos na muito questionada noção do Deus totalitarista. Num passado musical mais recente, pouco português, Nick Cave canta não acreditar num Deus intervencionista. Onde ficamos nós? Muitas vezes deixamo-nos no conforto das múltiplas referências, explicando as coisas boas como bênçãos de Deus e as más como coisas da vida. Afinal como é que funciona?
Se me ponho a esgravatar no “funcionamento de Deus”, é certo, vou esmurrar-me no muro da tal insondabilidade. Não construímos nós miniaturas dessa sebe na esperança que se torne muro de lamentações alheio? O que podemos nós oferecer a dois pais que com dificuldade geraram um filho, que a essa vitória chamámos bênção, que agora o sabem morto ainda no ventre? Um muro de lamentações insondável?
Este texto já leva uma quantidade desagradável de pontos de interrogação. O casal recém conhecido que me induziu a escrevê-lo está a lidar com um maior número, numa escala muito mais desagradável. Na Igreja Baptista orava-se por estes dois simpáticos vizinhos. Quando ela (com ele) conseguiu engravidar, ninguém hesitou em falar-lhes da ajuda de Deus, da maneira como Ele trabalhou, do poder da oração. Ontem descobriu-se que as coisas correram mal e o bebé não resistiu. É óbvia a insuficiência duns garatujos a marcador preto no abdómen para definir que “na nossa barriga mandamos nós”. E onde é que está Deus, neste momento, na vida daquele casal? Antes do gaguejar argumentativo Deus terá que estar nas nossas lágrimas.
Samuel Úria