Escrita automática em impressos
Em adágios pouco “salomónicos”, o habitante do nosso país guarda tudo para o fim. Sem bacalhau no prato, sem fado no leitor de cds e sem bigode para cofiar, sinto-me tragicamente português. Mas isto não é de hoje, é de todas as quintas-feiras em que o calendário me impõe o constante lembrete de ter à noite um encontro com o teclado do computador. Quinta-feira tem sido, nas últimas 10 semanas, o dia imposto para o envio dos textos do(s) “Animais Evangélicos” e o dia escolhido para os escrever. No entanto, nesta quinta em particular, afligiram-me a falta de tempo, o cansaço e a constante presença de aterradora burocracia. Ainda assim avistei luz ao fundo do túnel, muito devido a algum apalermado optimismo: hoje era o dia perfeito para escrever pouco, para me redimir do constante excesso de linhas que transbordam semanalmente. Óptimo, pensei, talvez não houvesse tanta gente a saltar o espectro palavroso das coisas que escrevo. Convenhamos, ser um “animal evangélico” não me obriga a estar sempre a bater em questões que exigem opiniões inflamadas. Há tempo para abordar a eutanásia mas muito mais para deliberadamente não o fazer.
Então hoje era dia para escrever pouco, dia para não me preocupar muito. Só que…nada. A azáfama e a impiedosa trajectória das horas, sempre em frente, sempre rápidas, não me permitiam assentar ideias sobre um tema a desenvolver. Queria dizer pouco mas o que tinha era mesmo nada. Entre repartições escolares lá ia aparecendo um banco de jardim ou outro de café. Pegava na parte de trás de uns impressos inutilizados e começava a escrevinhar algumas coisas. Guardava a esperança (apalermado optimismo) de à noite conseguir criar uma argamassa de frases para juntar ideologicamente aqueles pensamentos dispersos que, em escrita automática, me iam surgindo das mãos. Outro ditado, também pouco salomónico, afirma que “quem diz a verdade não merece castigo” e eu aproveito o balanço para confessar: As seguintes considerações estão desarrumadas porque não tive capacidade de ludibriar ninguém com uma narrativa consistente que as englobasse. Também aproveito para ser impecavelmente honesto e declarar que o formato em que surgirão tais pareceres é fruto da minha inépcia e não advém de qualquer influência pascaliana.
Depois de ficar de olhos em bico numa secretaria escolar, tentei atacar a coisa que mais me aflige – a burocracia – partindo de qualquer base bíblica. Não cheguei a alguma conclusão o que é muito positivo, pois usar a bíblia para justificar ódios e medos tem às vezes resultados muito maus. Fica então o pequeno e inacabado texto:
“Adão e Eva comeram o fruto, foram expulsos do Paraíso, ficaram nus, veio o frio, veio a vergonha, veio a burocracia.
Safou-se o primeiro dos homens ao ter nomeado os animais antes do pecado original. Safou-se a bicharada de aguardar a vez enquanto, por se terem inadvertidamente rasurado, folhas de inscrição eram substituídas por novas. As listas de espera não resistiriam à cadeia alimentar.”
Imbuído da mesma escassa profundidade, escrevi o segundo texto num banco de jardim plantado em frente a uma loja de música. As escandalosas promoções não seduziram a minha falta de dinheiro nem tampouco salvaram a sequência de garatujos que se segue. Nesta altura estava decidido a resumir ao máximo o texto final.
“Vejo pessoas a olharem para as montras e distingo dois tipos de homens (as mulheres permanecer-me-ão um intrincado mistério): os que em alguma altura da vida imaginaram tornar-se escritores e os que começam a perceber que o sonho de ser futebolistas já não passa disso. Tanto uns como outros precisam de Jesus. Não entro em explicações complicadas. Bastou dizer-se que um determinado nome de electrodomésticos “é bom”, para a marca vender os seus produtos, não falando no que se poupou em segundos de publicidade radiofónica. Desta feita, num mundo amamentado com “slogans”, mais vale dizer que “Jesus é bom” para não competir com o conforto das mentes preguiçosas que precisam de saber e não entender. O homem do talho, o sinaleiro e o teu irmão precisam de Jesus. Porquê? Porque Jesus é bom. Se por aqui me ficar mais gente chegará ao fim deste texto e eu próprio também me estrearei no chegar ao fim de uma questão.”
Ainda no mesmo local, uns pequenos apontamentos:
“O melhor músico do séc. XIX era surdo. Nos anos 60, os melhores filmes sobre o Oeste americano eram italianos. Por volta de 30 e poucos D.C., o homem que melhor e mais rapidamente entendeu a mensagem de Jesus era um condenado criminoso (em segundo lugar fica um desonesto cobrador de impostos).”
“Há quem ouça o padre aos domingos e a astrologia no programa do Goucha às segundas-feiras. Há quem vá a pé para Fátima, de carro à bruxa, mas evite sair de casa com medo da consulta no dentista. Eu fiquei acordado até ás 5 da madrugada a ver os Óscares, por isso não me parece que a estupidez seja uma coisa exclusiva de quem não é salvo. Pelo menos o Billy Cristal preconiza uma melhor desculpa que todas as outras.”
Finalmente numa pastelaria, já com manchas de açúcar pasteleiro nas calças de ganga, desenrasquei tempo para pegar no porta-minas e esgrimir umas poucas e desamparadas palavras:
“Se fosse conhecida com exactidão a data do dia do Pentecostes, de certo hoje nunca fariam coincidir com ela a “Marcha por Jesus.”
“Mónica Bellucci no papel de Maria Madalena será talvez a coisa mais anti-semítica que o filme de Mel Gibson irá trazer.
Nada mais chegou ao papel. Quase tão pavorosa como a burocracia é a falta de inspiração. Pior que todas é a falta de tempo. Nem sei como concluir este peculiar desastre “exegético”. Talvez com outro pensamento disparatado, este surgido no início da minha redacção final:
“Outra coisa a lembrar-me que sou português é a camisola interior de alças que trago por baixo da roupa.”
Samuel Úria