sexta-feira, março 26, 2004

Os temores do neto de pastor
No último domingo de Ceia do Senhor na minha igreja, uma menina de pouco mais de dois anos quis quebrar a solenidade do momento e participar do pão. Quando a bandeja chegou perto dela, tomou a iniciativa de lançar mão ao elemento. A avó rapidamente corrigiu o instinto espiritual precoce da neta, repondo à cerimónia a contenção devida.
Não fomos feitos com uma reverência a toda a prova. Parte substancial do humor nasce da transgressão. Ou pelo menos do desejo de transgredir. A religião, cheia de pruridos e regras bem intencionadas, é o terreno onde, por excelência, dá vontade de quebrar o código. O filho delinquente do pregador é um clássico. Nas igrejas protestantes o peso de ser filho do pastor é grande. A forma como a paternidade sacerdotal resulta frequentemente em descendência proscrita não é rara. Dos filhos de Eli ao Alice Cooper, a tradição é diversa.
Eu que não sou filho de pastor mas neto nunca fui um rebelde urbano. A minha mãe, produto original, também não foi uma Calamity Jane. Mas parte do material genético que dela herdei passa por um sentido de humor que gosto de classificar iconoclasta. Tanto se faz pouco do padeiro como do missionário. É um dom.
O púlpito não será tradicionalmente pensado enquanto local de grandes tentações. Mas eu gosto de pensar nele nesses termos. A solidão do reverendo, o levar-se demasiado a sério, o estarmos de pé enquanto os outros permanecem sentados, o risco da desinspiração, entre outros, são perigos demasiado verosímeis. O inesperado locus horrendus. O humor pode ser tão útil como a vara para Moisés. Resta saber se com ele vamos abrir mares vermelhos ou fender rochas no deserto para matar a sede a congregações impenitentes.
Tendo crescido nos subúrbios conheço bem o terror do assalto inesperado ao virar da esquina. Tendo crescido na igreja conheço bem o terror do pregador que não sorri. Peço ao Senhor que seja liberto de ambos.
Tiago de Oliveira Cavaco