sexta-feira, março 19, 2004

E a serpente?
“Eis que vos envio como ovelhas ao meio dos lobos; portanto, sede prudentes como serpentes e simplices como as pombas.” (Mateus 10:16)
É intrigante que estas palavras de Jesus, dirigidas aos seus discípulos, passem quase despercebidas aos crentes de hoje. De facto, trata-se de um mandamento importante para quem, como os doze, vive num ambiente hostil ao Evangelho. Se, por um lado, a parte das ovelhas e das pombas não espanta ninguém, o mesmo já não se pode dizer da prudência estilo serpente. Para muitos cristãos este trecho da advertência do Mestre pura e simplesmente soa a novidade.
A responsabilidade desta omissão cabe, sobretudo, à deturpação do conceito de Amor. Cultiva-se uma visão demasiado passiva, quase displicente. Muitas vezes entende-se o Amor como uma espécie de desculpa demissionária na luta com os “lobos” deste mundo. Que oferece logo a garganta, e se contenta com o papel de mártir, em vez de preparar responsável e ousadamente a defesa e o consequente contra-ataque. Não será que muito do que fica por cumprir da nossa função de “sal e luz do mundo” se deve a esta noção míope? Por alguma razão o Senhor usa a imagem dos dois animais. A sinceridade e a simplicidade, e, ao mesmo tempo, a perspicácia e a prudência.
Na recente discussão pública e parlamentar sobre a despenalização do aborto aconteceu um bom exemplo de como deve ser esta oposição activa.
Os movimentos pró-vida recolheram quase duzentas mil assinaturas contra a despenalização, num curto espaço de tempo. Entretanto, as organizações pró-aborto tentavam legitimar um novo referendo com as suas cento e vinte mil assinaturas a favor. Durante semanas, contaram com o apoio evidente dos principais órgãos de comunicação, incluindo as três televisões. Mas todo o seu esforço foi relegado para segundo plano perante a inesperada, e mais volumosa, petição em sentido contrário.
Para além da organização, capaz de mobilizar e agregar, este sucesso teve também por base uma boa estratégia. O efeito surpresa e o momento escolhido para a divulgação foram fundamentais. Quando se tornaram públicos os resultados do abaixo-assinado, os adversários pouco mais puderam fazer do que mostrar compreensível irritação.
Se os movimentos pró-vida tivessem optado pela passividade, a causa da despenalização teria ganho facilmente uma batalha. Mas eles reagiram. Estava em jogo a defesa da Vida, e não quiseram ficar de braços caídos, carpindo as suas mágoas. Souberam defender-se. Responderam à altura, delineando uma estratégia inteligente, sem, no entanto, justificarem os meios com os fins.
Este é, pois, um bom exemplo para os cristãos. Se o Senhor Jesus nos envia ao meio dos “lobos”, Ele também nos dá as armas para resistir. A transparência dos simples e a sabedoria dos prudentes.
Pedro Leal