sexta-feira, março 12, 2004

[Sem título]
O dia 11 de Março ficará a partir de agora marcado para a posteridade por um acontecimento muito mais trágico que o contra-golpe de 1975, aquele que inauguraria o período certamente mais tenso da história recente do nosso país. Os atentados de Madrid voltam a manchar de sangue e lágrimas mais um dia 11. Independentemente das seculares rivalidades e de um certo ignorar mútuo entre os povos ibéricos, não podemos ficar insensíveis ao que se passou na capital do Estado vizinho. São, afinal, apenas 600 quilómetros que separam as nossas duas capitais, pelo que é real a proximidade e a presença entre nós, entre todos nós, deste novo fenómeno que é o "terrorismo global".
Entretanto, neste mesmo 11 de Março, o de 2004, outras coisas se passaram neste pequeno país. De destacar a estreia do já afamado, e tão afamado quanto controverso, filme "A Paixão de Cristo" de Mel Gibson. Sem ser a pessoa mais qualificada para fazer crítica de cinema, arrisco mesmo assim a avaliar o filme como impressionante e brutal.
O realismo do sofrimento de Jesus levado até à exaustão tem certamente resultados diversos perante os seus espectadores. Por um lado, releva um aspecto muitas vezes negligenciado na vida de Jesus ou, pelo menos, olhado com ligeireza: o sofrimento físico, a tortura psicológica e a forte tensão que se abateram sobre o Filho de Deus, nos últimos momentos da sua vida terrena. O que Gibson quis certamente mostrar, como muitos outros artistas o têm procurado fazer ao longo destes dois milénios, foi que Jesus efectivamente sofreu por nós. É particularmente significativo o papel simbólico do sangue, o qual tem uma força e presença teológica notável ao longo de toda a história bíblica da salvação. Mel Gibson recupera essa imagem de uma forma poderosa, de tal modo que quase podemos acompanhar o processo de derramamento de cada uma das gotas de sangue de Jesus, desde o momento em que o seu suor se transforma em sangue até ao grito final "Está consumado".
Por outro lado, todavia, corre-se o risco, certamente calculado pelo autor da película, de resumir a vida de Jesus a este momento ou, mais perigoso ainda, resumir a sua obra ao episódio da morte. Claro que seria essa a intenção do autor... e também é verdade que, para que outras conclusões não se venham a tirar, a ressurreição é efectivamente o fim da história. Quase como um anexo, quase como um apêndice, mas ela lá está com uma literalidade impressionante, apesar de retratada de forma curta e pouco expressiva, ao contrário de cada um dos restantes momentos do filme.
Uma obra é sempre uma criação artística. E, nesse aspecto, independentemente de tudo o que se venha a dizer sobre esta criação artística em particular, a verdade é que ela tem méritos assinaláveis. A verdade é que, apesar de todo o material extra-bíblico ou mesmo extra-histórico presente no filme, apesar de todos os elementos de interpretação pessoal que uma obra desta natureza tem que necessariamente conter, esta nova leitura sobre o sofrimento de Jesus vai ficar a fazer parte do vasto conjunto de obras sobre este tema inesgotável. Quer se queira quer não Jesus é uma figura incontornável da nossa história comum.
Uma das últimas imagens do filme impressiona pela recriação de um tema já glosado por inúmeros artistas, apesar da mais conhecida interpretação pertencer ao génio renascentista Miguel Ângelo. A pietá de Mel Gibson passará também a partir de agora a fazer parte das galerias de todo o mundo, nem que seja através das nossas mentes.
Timóteo Cavaco