sexta-feira, março 12, 2004

[Sem título]
É necessário estarmos fora de um processo para podermos assegurar um estatuto observatório que possibilite uma eficaz análise desse sistema. Partindo desta ideia de alienação para a investigação, seria necessário abstermo-nos de inteligência incisiva se pretendêssemos uma abordagem dos fenómenos preconizados pelos "intelectuais" (enquanto pessoas que se valem da mesma "inteligência incisiva"). A tarefa fica facilitada ao recordar que é a essa estirpe (em nada quero que os adjectivos usados ganhem conotação depreciativa) que cabe a tarefa de analisar todos os processos à nossa volta. Agora surgem-me duas questões: a primeira, facilmente refutável, pergunta se será necessário apartarmo-nos do intelecto para, imparcialmente, analisar aqueles que dele se valem. A segunda questão, em alguns aspectos consequente da primeira, interroga a possibilidade, ou não, de se poder traçar uma decomposição crítica de quem dessas decomposições se ocupa: os chamados "intelectuais" (pela segunda vez uso o termo entre aspas e pela segunda vez não o faço desdenhosamente).
Se há alguma coisa que se preze nos pensadores é a individualidade dos seus pareceres. A defesa de opiniões só se torna singular quando exposta cabalmente através de um raciocínio lógico que se quer original, único. Vergo-me perante os pensadores (não meros faladores) quando estes aliam a dedução lógico-pragmática à exposição retórica, tão incontroversa que roça a performance artística. Não me deslumbro em vão. A capacidade analítica é um requisito omnipresente nos ouvidos que concedo aos intelectuais. Contraditoriamente pego na unicidade para entrar em generalizações; é por esta que se torna realizável a equiparação de um filósofo a um músico, de um aguerrido comentador político a um pintor, de um pertinente crítico de arte a um próprio artista. No preparado, inspirado e pungente intelectual, antevê-se a elevação habitualmente reconhecida apenas aos executantes em campos artísticos. A partir deste ponto desvendo a generalização apontando a questão das tendências. Tal como no campo das artes, por muito genial que se seja, em alguma altura da vida há uma cedência às tendências. No caso dos intelectuais é possível encontrar correntes a que se agregam variados subscritores. Se falo em "cedência" não a traduzo com frouxidão, nem significará "moda" a noção que apresento de tendência - o desejo de engrossar a fileira de pensamentos é raiz suficiente para aderir. Recuso igualmente remeter-me para o capítulo da globalização; os grandes temas não encaixam aqui bem (ou vice-versa).
Na minha observação do intelectualismo consigo registar alguns fenómenos cíclicos. Um que me diz respeito (daqui dou um salto de gigante para puxar a brasa à sardinha que tardava em aparecer) apresenta uma cronologia onde sinuosamente certas tendências intelectuais valorizam ou promovem valores conservadores. Admito que as tendências, neste caso, estejam muito dependentes da aceitação do "público" que selecciona ou rejeita, de entre os pensamentos manifestados, aquele com que prefere caracterizar a sociedade. Mas, escolhas à parte, é várias vezes incontornável observar como se reacende o apego a valores conservadores, sem cair em comuns reaccionarismos ou maléficos preconceitos de óculos baços. Depreende-se que o oposto acontece em igual medida, mas interessa-me pegar sumariamente no apelo e promoção de determinados valores. Passo até a afunilar para um aspecto que validará o discurso anterior neste espaço de "evangélicos": o facto de haver um interesse intelectual, ético, estético, sematológico ou cultural na leitura das Escrituras pode abrir várias portas para a teofania que nós protestantes sabemos ser possível através da Bíblia. Por outro lado, a monocularidade racionalista sobre a Palavra de Deus é um provável entrave a uma abertura espiritual, necessária para que a mensagem seja revelada. Enquanto crente nas Escrituras, não nego o conforto de ter referências em personalidades insuspeitas que impedem a ridicularização sumária das coisas em que acredito. Apesar de a minha Fé não estar em causa, entre as várias tendências filosóficas ou políticas (não estou certo que aqui há dissociação) ver surgir pareceres intelectuais que reverenciam a Bíblia, dá algum alento. Infelizmente já não se faz mais nenhum Kierkegaard ou nenhum Pascal. Infelizmente nem todos os que defendem a Bíblia têm autoridade moral ou intelectual. Infelizmente ainda se dá a primazia à estrutura ignorando o conteúdo, o cultural antes do espiritual. Infelizmente ainda há muitos caracóis cristãos que esperam o sol das sumidades para porem os corninhos de fora.
Continua a ser o ego que dita as vantagens. Dantes eu era um "totó" que lia a Bíbila devocionalmente, mas hoje já posso ser um rapaz de 24 anos que lê a Bíblia devocionalmente. A devoção não é entendida, mas as cuspidelas que rebaixavam são ultrapassadas pelo interesse atento dos "sábios profissionais". Assim não fecho as portas a quem mas abre. Ninguém é "bem-aventurado por não se deter no caminho dos intelectuais". Muito bom cristão se esquece disso e só se lembra que Jesus escolheu a companhia de pescadores. Eu prefiro lembrar-me que não há desculpa para a estupidez. A humildade, essa sim, não precisa de desculpa.
Sou dos que sorriem para os intelectuais e até admito acusações de periódica fascinação. No entanto, antes de me contaminar, prefiro continuar a ser o "totó" que faz os devocionais. "Pseudo-totó".
Samuel Úria