sexta-feira, março 19, 2004

O bom ruído litúrgico
Na minha igreja há um velho casal cuja senhora é razoavelmente surda e o marido suficientemente solícito para auxiliá-la. Durante o sermão, quando o pastor indica a passagem bíblica, a congregação espera pelo eco. O esposo repete as coordenadas geográficas das Escrituras para que a sua mulher, mais experimentada na ordem do cânone, abra no sítio certo. O que poderia ser considerado ruído comunicacional é para mim a garantia que me mantenho no local apropriado. Na igreja.
Como boas criaturas carentes da paciência divina que somos, tendemos a escolher a igreja à qual pertencer como quem escolhe um par de calças de ganga. Segundo as tendências vigentes e um nem sempre muito confiável critério estético. Isto quando algo nos leva a abandonar a congregação na qual nascemos. Actualmente os átrios dominicais mais repletos são aqueles que oferecem uma satisfatória componente performativa. Um programa organizado. Sem espaços em branco. Com um som irrepreensível. Pastor e instrumentistas higiénicos. Uma projecção nítida dos textos. Em suma, um culto decente.
É o apego de muitos a estes cultos decentes que provoca que tantos não façam a mínima ideia daquilo que a igreja é. Eu também não estou completamente seguro mas vou fugindo destas assembleias ordeiras. Que não seja mal interpretado. Abomino pastilhas elásticas e namorados embevecidos nos bancos da casa de oração.
A natureza espiritual da igreja implica a sua própria imprevisibilidade. E se isto serve muito bem os interesses dos fascinados com a sobrenaturalidade, o certo é que não se fica por aí. O quão mais nos aproximamos do divino, melhor sentimos o humano. Reconstruo. Quanto mais impecável é a execução da liturgia, maiores são as possibilidades de não comunicarmos com o Criador. Uma espécie de monotonia celestial com gente que se esforça demasiado.
A dureza de ouvidos daquela anciã é, na minha congregação, a certeza de que ainda são pessoas que por ali estão a tentar louvar o seu Deus. Enquanto não se transformarem em frequentadores de cultos decentes, tudo ficará bem.
Tiago de Oliveira Cavaco