sexta-feira, março 26, 2004

Padres sem castidade: brincadeira de mau gosto
Viu que Isaque brincava com Rebeca, sua esposa.” (Gén 26:8)
Isaque tinha tentado enganar o rei Abimeleque dizendo que sua esposa era apenas sua irmã, mas Abimeleque descobre a mentira de Isaque quando vê os dois a “brincarem” aos jogos amorosos. A Edição Actualizada de Almeida diz que ele “acariciava” Rebeca. A palavra hebraica faz um jogo de palavras com o nome do próprio Isaque (yishaq = riso). Assim, “brincar” ou “acariciar”, traduz a palavra hebraica “masheq”, trazendo significados repletos de segundos sentidos. Brincar com Rebeca, para Isaque, era acariciar sexualmente, tendo todo o gozo dos preliminares do jogo amoroso. Surge uma primeira conclusão: a Bíblia não é contra o sexo como veículo de prazer. Pelo contrário há sugestões claras dadas em Provérbios 5:18-19: “alegra-te com a mulher da tua mocidade, saciem-te os seus seios em todo o tempo, e embriaga-te sempre com as suas carícias”. E em Cantares temos um livro inteiramente dedicado ao amor romântico.
Por isso o escândalo dos Padres americanos sem castidade, ganha proporções enormes, não apenas pelos milhares de padres envolvidos e pelos milhões de dólares pagos em indemnizações, como também pelo carácter absurdo da premissa que leva ao escândalo. Ou seja, (1) já é escandaloso um padre sentir desejos sexuais normais. O padre não tem a opção de exprimir a sua natureza sexual. Essa faceta da sua personalidade simplesmente tem de ser obliterada. (2) é escandaloso o padre ter impulsos anormais. Como a pulsão sexual não é anulada pelo sacerdócio, ela aparece distorcida na forma de neuroses.
- Energia sexual
Voltemos ao princípio. Na criação, o termo macho e fémea, denota uma energia sexual primordial que caracteriza todo o ser humano. Naturalmente, cada um tem a sua bagagem sexual que carrega consigo pela vida e que é alimentada por experiências de infância, educação, meio-ambiente, etc. Daí que os padrões sexuais sejam impossíveis de prever ou receitar. Mas é impossível negar a existência da energia sexual que habita em nós.
- Relação sexual
Também se torna claro pelo relato Bíblico que a sexualidade deve coabitar harmoniosamente com a espiritualidade. Paulo aconselha a que não haja abstinência sexual dentro do casal a não ser por consentimento mútuo, e por pouco tempo, para se dedicarem à oração (1 Cor 7:5). Sexualidade e espiritualidade não são inimigos da estimação, mas antes complementos de satisfação. “Pecado” e “carne”, não coincidem (isso é Platonismo). A sexualidade é dádiva de Deus, e o acto sexual é resgatado do estigma negativo, até porque simboliza a união entre Cristo e a sua Noiva, a Igreja (Ef 5:25-27).
- Tentação sexual
Tendo dito isto, parece-me natural que o padre esteja mais inclinado para o escândalo sexual do que o pastor. O pastor será mais tentado para o adultério (veja-se o caso paradigmático de Jim Bakker, e Jimmy Swaggart, nos Estados Unidos, e de Caio Fábio, no Brasil). O padre, pelo seu lado, será tentado, ... a tudo. Por que nada lhe é lícito, tudo lhe é punido. Não pode ter uma relação heterossexual, nem homossexual, e muito menos pedófila. O pastor será escravizado por um moralismo tipo Letra Escarlate. O padre sentir-se-á reprimido pelo voto casto, aumentando exponencialmente o risco de perversão dentro de si. Ao inibir-se a via normal, a pessoa é empurrada para as hipóteses perversas. Entra-se no reinado das neuroses, das fobias, das psicoses, das anomalias, etc. O pastor tem sempre a possibilidade de uma cerca de protecção à sua volta. Tem a esposa com quem pode satisfazer o seus desejos mais íntimos de erotismo e ternura. Tem os filhos e os familiares que possibilitam a construção de laços amorosos saudáveis e responsáveis. O padre está entregue a si mesmo ... e aos seus impulsos naturais. O pastor não é atraído pelo ministério como fuga aos seus traumas (certamente haverá excepções). O padre, pelo celibato obrigatório, pode trazer consigo distúrbios sexuais prévios, que encontram no sacerdócio uma legitimidade social e espiritual para o negação da sua sexualidade. Mas o voto de castidade não anula os impulsos sexuais (quanto muito serão canalizados noutra direcção), e eles surgem à tona de água, em formato distorcido.
- Obrigação sexual
No meio evangélico há uma obrigação do pastor casar (para não abrasar, e há com cada brasa!). No meio católico a obrigação do padre vai no sentido de não poder casar (certamente há muitos a abrasar). Os evangélicos perdem assim a contribuição ministerial de muitos que não se sentem chamados para o casamento; e os católicos desvalorizam desta forma muitos que não se sentem chamados para o celibato. No entanto, a Missão para a qual Cristo nos chama é pastoral: “Apascenta as minhas ovelhas”. E à partida, a sexualidade não deveria excluir nenhum candidato.

Textos de apoio:
- Revista Ultimato nº 277, em especial a entrevista com a psicanalista Karin Hellen Kepler Wondracek
- Freud versus Deus, de Dan Blazer
Samuel Nunes