sexta-feira, janeiro 23, 2004

Tenho a impressão de que o apóstolo Paulo dos tempos bíblicos não teria dificuldade em adaptar-se aos dias em que vivemos. A compulsão da sua origem judaica, com as suas cultura helénica e cidadania romana seria motivo suficiente para lhe conferir uma abrangência suficientemente pós-moderna. Por outro lado, a sua erudição e capacidade de trabalho metódica e organizada torná-lo-ia suficientemente aceite pela nossa academia, ainda profundamente marcada e até dominada pelo racionalismo (mesmo positivismo) moderno.

Imagino o apóstolo a fazer uma “auditoria” à comunidade eclesiástica de Corinto e a apontar-lhe uma série de “não conformidades” que poderiam fazer perigar a sua “certificação”. Listemos algumas delas:

o A informação, com origem na família de Cloe, de profundas dissensões no seio da comunidade que potencialmente conduziriam a situações de vias de facto; numa comunidade instituída sobrenaturalmente não é suposto que o elemento de união – Cristo – seja afinal um entre outros possíveis líderes de opinião.
o A sustentação da doutrina na sabedoria dos homens e não na sabedoria de Deus, a qual foi revelada.
o As muitas riquezas e a ambição desmedida por bens materiais provocam ensoberbecimento e vanglória.
o Relatos credíveis de um caso específico de adultério, com fortes possibilidades do mesmo ser incestuoso e sem a mínima preocupação com os efeitos danosos de tal acto; de uma forma geral, a ética sexual reinante era de carácter bastante duvidoso e ruinoso para a família.
o Afastamento fraternal de tal ordem, que os membros de uma mesma comunidade já não tinham capacidade para resolver as suas próprias questões, entregando a sua solução ao poder e à sociedade civil.
o Práticas morais bastante situacionistas e conjunturais, pouco preocupadas com princípios e valores; algumas tinham consequências de grau diferente mas eram sempre potencialmente perigosas, especialmente para os mais fracos ou jovens na fé.
o Desrespeito pela autoridade e pelos direitos dos líderes ao ponto de colocar em causa a responsabilidade da comunidade em providenciar-lhes os recursos necessários à sua subsistência.
o A despreocupação em relação a certas ideologias antagónicas ao Cristianismo e mesmo a aproximação a práticas de benefício duvidoso para os membros da comunidade.
o A inexistência de uma estrutura e organização mínimas na comunidade, com participação igual de todos segundo as capacidades de cada um.

Esta lista, certamente reduzida, comporta apenas os aspectos que precisavam de correcção imediata. O surpreendente é que o apóstolo, no meio de tantas “não conformidades”, assustadoras e ameaçadoras, surge com um desconcertante hino ao amor, chegando a dizer que este é o mais importante. Recuso-me a tirar daqui conclusões já que isto colide com a minha visão estruturada de uma doutrina cristã toda lógica e sistematizada. Ajuda-me, meu Deus, a receber o toque do carácter sobrenatural do amor e a render-me às evidências da Tua Palavra!
Timóteo Cavaco