sexta-feira, janeiro 09, 2004

Na televisão a contagem decrescente, patrocinada por uma marca de cerveja, chega finalmente ao número um. No momento seguinte, salta a rolha do champanhe, e todos damos as boas-vindas a 2004.
Trocam-se cumprimentos e votos de felicidade. Um pouco por todo o lado, os foguetes começam a rebentar. Na rua, os miúdos mantêm a velha tradição, com os apitos e as tampas dos tachos e das panelas.
É precisamente o som desses címbalos culinários que me traz a memória das passagens de ano na igreja.
Aí, sem contagens decrescentes, ou copos de espumante a transbordar, sabíamos que a meia-noite já tinha chegado quando, lá fora, as tampas começavam a soar. Às vezes eram tantas, e batidas com tanta força, que quase não conseguíamos ouvir o irmão que orava ao nosso lado.
Contudo, e ao contrário de outras pessoas, eu não sentia grande incómodo. Em vez disso, havia até um certo aconchego.
Sabia que estava no lugar certo, com as pessoas certas.
Lá fora, a euforia alimentava-se de superstição. Provavelmente os foliões não percebiam, mas cumpriam um ritual milenar para afugentar, do ano que nascia, os maus espíritos.
Lá dentro, em comunhão uns com os outros, e com Deus, procurávamos não a boa sorte para os doze meses seguintes, mas o fortalecimento sereno dos laços que nos uniam.
O contraste era tão evidente, a velha e a nova forma de viver expostas de forma tão crua, que o barulho funcionava, pelo menos para mim, mais como catalizador do que como adversário.
As metáforas tornam-se particularmente valiosas quando são vividas.
Pedro Leal