[Sem Título]
Cheguei ao absurdo de ir procurar “moral” e “ética” a um dicionário. Há dias em que acordamos com a estranha sensação que somos imputrescíveis baratas num putrefacto mundo de pessoas normais. Os valores mudam e eu estava com medo que me tivesse escapado alguma coisa, mas “moral” e “ética” eram idênticos num dicionário com quase 100 anos e no cd-rom da “Diciopédia” do ano passado. Kafka não era um crítico da sociedade, era um profeta do absurdismo por vir.
Eu tinha planeado não entrar em polémicas. Tinha, no meu íntimo, prometido abster-me das vulgaridades na abordagem de rebatidas temáticas da ausência de valores. Até pensava guardar para hoje uma reflexão sobre as gravuras do Paulo Ribeiro, da maneira como elas agregam ideias de um Rosseau (o Douanier, não o Jean-Jaques), Lichtenstein (o Roy, não o principado) e Francis Bacon (o pintor do século passado e não o filósofo do séc. XVI). Esforcei-me (oh, se me esforcei!) para não ceder ao moralismo desusado de um jovem conservador baptista, mas o dicionário tem sempre razão e afinal “ser moralista” tem tanto de mau quanto de subjectivo.
Não fosse o “diabo tecê-las”, aproveitei para ver o que era a “intolerância”. Se aceitamos entrar numa coisa chamada “os animais evangélicos” mais vale ter as vacinas em dia para precaver esperados ataques. Agora que sou uma pessoa informada dou-me ao luxo de rir caso ocorram tentativas difamatórias de traçar o meu perfil tendo em conta os adjectivos que procurei no dicionário. Revelo, a título de curiosidade, ser muito menos tolerante com pessoas viciadas no uso do WordArt do que com os defensores da despenalização das drogas leves. A intolerância está, hoje em dia, conotada com desrespeito e nesse caso tenho menor paciência para a estupidez estética do que para um confronto com ideias para as quais mantenho consciente reserva. Em contrapartida já não posso esperar de volta esse debate de ideias - hoje em dia basta-se ser contra alguma coisa para reduzirem a “ser-se do contra”. É, por isso, muito arriscado ser-se “moralista” já que o termo ganhou uma falsa conotação aviltante. Basta proclamar qualquer tipo de moral para ganhar um rótulo de tacanhez que se torna insuperável num debate. Claro que isso é mais vantajoso para aqueles que defendem ideais desprendidos da moral vigente, assumindo que se regem pela nova ética (uma ética pós-moderna?) humanista. Esquecem-se, se calhar, que eu hoje fui ao dicionário. Este confirmou-me que a ética nada mais é do que a ciência da moral.
Sendo assim, apelar à mesma moral passa a ser mais um argumento de defesa da imoralidade do que um de condenação. Se desaprovamos o aborto somos moralistas hipócritas e acabou-se a conversa. Se a nossa ética cristã nos impele a amar o homossexual mas não a homossexualidade estamos a ser moralistas fundamentalistas e acabou-se a conversa. Quem é que é, então, intolerante se a conversa se acaba? Para rebater o conservadorismo, haverá argumentos mais esfarrapados, gastos e descabidos que os do apontar o dedo acusatoriamente para os que estão a ser “moralistas” e “intolerantes”? Infelizmente essas palavras ainda metem medo a muita gente. Infelizmente ainda se prefere fugir da moral para não se ser indiciado de nada. Ou está o mundo mesmo pervertido ou muito me engana o dicionário.
Claro que já começamos a perceber alguns destes esquemas retorcidos. Basta julgar a recente polémica entre o “animal evangélico” Samuel Nunes e um grupo de homossexuais internautas. Para estes senhores é inadmissível que o Samuel Nunes tenha coisas como inadmissíveis. Asseguro que a questão continua paradoxal mesmo se chamarmos os nomes às coisas. Para os senhores internautas é escandaloso que alguém use a moralidade Bíblica para ir contra opções sexuais. Ir contra as opções religiosas do Samuel Nunes já é, por seu turno, uma acção que insta pôr em prática, quanto mais desrespeitosamente melhor. Isto porque não é ético estar-se contra a escolha sexual das pessoas. No entanto o dicionário diz-me que a ética é a ciência da moral. Onde está, pois, a moralidade da questão? Claro que os referidos senhores também não “toleraram” que o Samuel se defendesse das acusações de homofobia. Não é nada difícil entender que acusar de homofobia continua a ser uma potente arma de arremesso argumentativo. É um esquema quase politicamente maquiavélico este de criar a própria martirização para alcançar poder. Noto que com isto não nego que exista verdadeira e lamentável homofobia mas é mais lamentável ainda que ela seja inventada para auto-vitimação . É uma espécie de desejar baixas de um Pearl Harbor para legitimar o uso de qualquer bomba atómica.
Com um suspiro recordo-me não querer entrar em polémicas. Prometo, agora a sério, abandonar definitivamente o assunto para me poupar a uma desnecessária troca de palavras. Na Bíblia, a questão de deitar pérolas a porcos não se resume ao facto das pérolas serem demasiado valiosas para os suínos. O problema é que esses querem mesmo ração de porco ou restos e estão-se a marimbar para as pérolas. Ainda assim, e hoje falam-me tanto a Bíblia como o dicionário, não nos devemos preocupar se esbanjamos a moralidade com porcos que propositadamente dela se enojam.
Samuel Úria