“Kill Bill - vol I”
Um autor de banda desenhada que aprecio particularmente usa com frequência uma estratégia narrativa que, enquanto leitor satisfeito, acho impecavelmente eficaz. A abordagem é quase pleonástica: a empatia que geramos com as personagens coincide com o sofrimento delas. O autor pega nos protagonistas e leva-os ao Inferno. Destrói-lhes a vida, fere-os gravemente, retira-lhes os bens e a família, amachuca-lhes a honra e a dignidade. No entanto a ficção nos livros é capaz de muitas maravilhas. Uma delas permite-nos, pelo número de páginas que faltam, adivinhar que aquilo não vai ficar assim.
Subsiste a dúvida, ou a contenda, quanto à factualidade do livro de Job. Não é uma questão que me apeteça aflorar agora, mas admito que não me escandaliza existir “ficção divinamente inspirada”. Em qualquer dos casos nunca ponho em causa a mão de Deus por detrás desse livro. Seja d’Ele ou de um poeta usado por Ele, a história do malogrado Job jornadeia pelo mesmo tortuoso comboio descendente onde embarcam os personagens do autor de BD com que comecei. Mas o apeadeiro de destino é muito diferente. Quando estou lá em baixo com Job, ferido, despojado e doente, continuo a leitura preso na inacreditável perseverança, admirado com a sobre-humana persistência. Viro a página inspirado num exemplo demasiado santo para conseguir identificar-me. Quando mergulho na desesperança da história aos quadradinhos, vejo que há decididamente uma vitória nas folhas que ainda faltam ler, mas, tal como o personagem principal, o que me faz virar a página é a grotesca e muito humana sede de vingança. Na negrura das vinhetas, deliciamo-nos com as sangrentas “vendetas”.
De mim podem-se esperar as mais básicas conclusões. “O Homem é vingativo, a vingança é má e o Homem precisa perder essa sua natureza” poderia equacionar tudo o que venha a dizer. Contudo, se há alguma coisa que aprendi com os filósofos que me “interessam” é que, em abordagens de certos conceitos referentes ao “Homem”, equacionar com lógica e pragmatizar é tudo o que não se deve fazer de rajada. Agrado então aos comedores de letras e não me fico já aqui.
Disse-me um professor que uma boa obra artística cinematográfica tem que dar “um bocadinho de sono”. Continuava os seus pensamentos referindo que o indicador da nossa maturidade pode-se fixar no facto de sermos capazes de gostar genuinamente de um filme em que se “safem os maus e morram os bons”. Talvez neste último caso a referência estivesse na capacidade de abstracção da história, aplaudindo o filme pela sua estrutura e valor estético. Também posso entender que a análise artística de uma película revela maturidade quando é feita à margem dos princípios e gostos não “academizados” de quem a faz. Pessoalmente apreendi que é necessário fiscalizarmos a nossa ira contra injustiças - precisamos ser suficientemente maturos para não perdermos tempo a consumirmo-nos com preocupações advindas da ficção, mas, por outro lado e mais importante, não podemos mascarar, de moral irritada pela injustiça, a fatídica avidez vingativa. Não há nada de moral nesta vindicta. Não há nada de moral no desejo de sermos carrascos de pescoços que nunca podem ser designados para o nosso machado.
“Minha é a Vingança”, diz o Senhor. Nem que fosse eu o mais santo dos santos a poderia menear levemente. E se aludo a santidade, fico pasmado com o apóstolo Paulo que por vezes parece querer vingar-se de si próprio. Ao mesmo tempo que recebe a alegria da Graça, o homem conhecido antes por Saulo parece definhar por não lhe ser autorizado exorcizar, seja pela Lei ou qualquer sacrifício, o trágico passado de perseguidor, o ódio que nutria por Cristo, os olhos de Estêvão a perderem a vida. Numa noção de honra que nos transcende, o mais difícil de amar para o apóstolo era a sua própria pessoa; a cabeça mais difícil de não cortar, de abster do sacrifício sanguinolento, era a sua. Mas a Graça, afinal, bastou-lhe. Os “sacrifícios vivos, santos e agradáveis a Deus” bastaram-lhe. Ainda assim, ao contrário de qualquer BD, esse Paulo não entra em cabines telefónicas para mudar de roupas e sair a voar com os seus super-poderes (quanto muito fazia esta símile na transformação de Saulo em Paulo). O apóstolo padecia da mesma pestilenta humanidade que nós. Entenda-se, evidentemente, no sentido de condição humana e não no de altruísmo ou caridade, este conceito de humanidade. Mas a de Paulo estava lá, transcendida de maneira a esbofetear-nos de cada vez que a vingança nos leva a melhor. Transcendida também para cuspir no chão de cada vez que o sacrifício se confunde com desagradáveis tarefas, joelhos em sangue, penosas peregrinações réprobas.
Sou demasiado deambulante nos meus textos para conseguir fixar-me num tema. Por essa razão chego ao fim do limite mais ou menos imposto de linhas sem dissecar algumas coisas que pretendia sob esta alçada da vingança. Dada a razão, é provável que noutro dia retome a temática, prometendo-me maior concisão e menor dispersão. Até lá, entre outras coisas aguardo que a sequela do “Kill Bill – A vingança” chegue aos cinemas. A Uma Thurman de fato amarelo justo é uma figura no mínimo interessante. Mesmo assim o Job ainda é o maior!
Samuel Úria