O cura temeroso
Um estimado pastor baptista da capital, com idade para gostar dos Pink Floyd, lamentava-se por um jornal tão consagrado quanto o Semeador Baptista possuir uma coluna fixa sobre cinema. Ora, nessas escassas linhas da última página aproveito o pretexto da sétima arte para escrever sobre tudo menos filmes. Pretendo aqui homenagear os pacientes leitores que já o perceberam há muito e, consequentemente, tentar denegrir com diplomacia o raciocínio do sacerdote assustado.
Desde a infância que me familiarizei com os tótens perante os quais os índios do Lucky Luke se dobravam. Nesse gesto se simbolizava um temor em que a matéria ocupava um lugar fundamental. Não me passa pela cabeça comparar a fé cristã com tão curvilínea liturgia. Por isso seria capaz de ter na minha prateleira de recuerdos inúteis um Buda sorridente ou uma Virgem chorosa, não fosse eu púdico a tentar disfarçar a minha tenebrosa e ocasional vocação de turista. Seriam apenas bonecos, como tantos outros. Sem precisar de ser benzidos ou exorcizados ou, ainda mais gravemente, levados a sério.
O ancestral temor em relação ao cinema resulta de uma bizarra actualização puritana da caça às colunas dobradas dos peles-vermelhas. Que acaba paradoxalmente perante o mesmo ídolo - o da crença supersticiosa que o mal habita na imagem. Na coisa. Na substância. Na molécula. Creio firmemente que quanto mais os cristãos perdem tempo com telescópios das tele-vendas para encontrar o pecado nas manifestações externas do mundo o mais se afastam daquela tese simples mas certeira do evangelho. Que coloca a semente da maldade no próprio coração do homem.
Não me passa pela cabeça tentar persuadir aquele reverendo vigilante a converter-se à cinefilia. Ainda menos afirmar que todos devemos gastar muito tempo em salas de projecção. Cada um usa a frigideira que quiser para cozinhar as carnes sacrificadas aos ídolos.
Tiago de Oliveira Cavaco