Quando dá jeito
Conheci há pouco tempo o Oleg. Jovem e robusto, tinha um olhar distante e uma expressão desconfortavelmente incaracterística. Depois de conhecer a sua história consegui perceber melhor o misto de revolta, sofrimento e resignação que do seu olhar parecia transparecer. O Oleg é Pastor Evangélico e Director de um Instituto Bíblico na Ucrânia mas veio para Portugal trabalhar como escravo para a máfia do seu país. É que o Oleg teve com o seu carro, um acidente em que danificou um jipe pertencente aos patrões da máfia local que, com toda a impunidade de que gozam condenaram o Oleg a ter de pagar o danos calculados por eles em 25 000 dólares americanos, uma fortuna num país em que um médico ganha cerca de 50 dólares por mês. Se o Oleg não pagar esta quantia, matam-lhe a família primeiro, e depois a ele. Faz cerca de um ano e meio que o Oleg deixou a sua família e a sua profissão para trabalhar cá, onde espera juntar dentro do prazo imposto o dinheiro que lhe resta.
Existem milhares de histórias destas. Ou melhor, existem milhares de pessoas com a vida nestes trapos. E quem rasga em trapos a vida destas pessoas são outras pessoas. Proxenetas, traficantes, violadores ou raptores são apenas pessoas, com a vida tão frágil como a nossa, mas que simplesmente destroem a nossa vida ou nos roubam a vida que queríamos viver. Todos estamos sujeitos a que nos aconteça algo assim. Todos estamos sujeitos a nos cruzarmos, ou pior, a termos de conviver com pessoas, que por vezes com artes perfeitamente legais podem fazer desmoronar quase tudo aquilo que valorizamos na nossa vida. Nós e eles, apenas pessoas.
Não consigo deixar de pensar em quantas vezes seria para algumas das vítimas tão simples resolver o seu problema. Quantas vezes não seria tão simples acabar com a vida de quem está a prejudicar a nossa. Vivemos porém, num país em que a maioria das pessoas não aprova esta via. Em Portugal, não aplicamos a pena de morte, nem colaboramos com países que a aplicam e é por isso que não repatriamos reclusos para países onde sabemos que vão ser executados. Tenta-se impedir o mal, mas protege-se a vida. De todos.
Quando se discute o direito de abortar, não consigo também deixar de reparar na semelhança destas situações. Ao partilhar as minhas reflexões sobre este assunto, tentarei fugir ao tom sensacionalista e à impetuosidade característica dos discursos radicalizantes, dos pregões e das manifestações. Tudo isso nos ensurdece e ajuda a escamotear o facto de estarmos perante um assunto delicado, eticamente denso, e de repercussões muito profundas em muitas vidas.
A meu ver, os mais fortes argumentos de entre os usados para defender a descriminalização da prática do aborto são: a pretensão de que o feto não é ainda um ser humano, (logo não se trata de homicídio), e o direito da mulher a decidir sobre o rumo da sua vida e do seu corpo.
Acerca do primeiro; parece-me lógico que tenhamos de traçar algures a linha que define o momento a partir do qual existe um ser humano. Parece-me no entanto, que não faz sentido traçar essa linha com base na existência órgãos, ou elementos de viabilidade biológica. A diferenciação de tecidos, a existência ou não de sistema nervoso central que permita sentir dor, a existência ou não de batimentos cardíacos, o desenvolvimento do cérebro ou dos sistemas vitais são frequentemente evocados para argumentar a inviabilidade biológica, a ausência de vida independente e alegar portanto que não se trata de um ser humano completo. Mas importa perguntar se existe alguma criança que aos doze meses, (por exemplo) tenha uma vida independente. Importa perguntar se uma criança à qual não se dá alimento, protecção e agasalho não é tão inviável como um feto sem batimentos cardíacos. A ausência de sistema nervoso central é tão letal como a ausência de cuidados neonatais. Em termos de dependência esta não acaba no nascimento, nem nada que se pareça. Só votamos aos dezoito anos!
Não me parece que faça portanto sentido afirmar, que não existe um ser humano antes de algum deste caracteres aparecer. Algumas das características do ser humano, muitas pessoas nunca chegam a ter, mas não é por isso que não são seres humanos. Desde o momento da fecundação que somos completos, seres humanos em potencial, biologicamente dependentes da mãe durante nove meses, educacionalmente dependentes durante muitos anos, e afectivamente dependentes a vida toda. A mórula, o embrião, o feto são de facto uma vida, e o aborto é de facto uma morte para essa vida.
O segundo argumento assenta no direito à liberdade da mulher. À liberdade de terminar com essa vida que lhe vai exigir cuidados, riscos, despesas e dor. Ter um filho exigiria uma dedicação, que não estamos dispostos, ou não nos sentimos preparados para ter. Seria demasiado prejudicial para a vida que planeávamos ter, e assim, optamos por acabar com essa vida antes que ela seja muito evidente. Terminamos uma vida que está escondida, para podermos continuar com a nossa. Para não nos sentirmos mal por termos dado o filho para adopção. Para nunca termos visto a cara dele, nem corrermos o risco de nos afeiçoarmos. Para ninguém poder dizer que não nos interessámos. Para ser mais fácil esquecer. Para podermos não usar contracepção, se não nos apetecer. Para ser mais fácil para toda a gente. Menos para aquela vida que acaba.
Todas as éticas humanas são utilitaristas e virá um referendo em que a maioria escolherá a uma ética. Pretende-se que a lei seja justa para as mulheres. Uma lei justa, defenderia os direitos laborais das grávidas e das mães, tentaria garantir assistência e condições de vida. Educaria, formaria e responsabilizaria a todos.
Mas a lei da conveniência, a que faz um by-pass ao valor da vida, só nos ensina a assobiar para o lado.
Parece que ajuda, por ser mais fácil, mas não é uma ajuda perversa?
Tiago Branco