sexta-feira, maio 21, 2004

Luz frouxa
Os alimentos no cardápio da Igreja resultam, demasiadas vezes, em digestões difíceis. Não por custarem a deglutir, não por deixarem amargos de boca. Pelo contrário. É difícil a digestão das substâncias que o organismo desconhece como aproveitar, doces alimentos isentos de mastigação, hóstias costumeiras.
Mediocridade! Tem onze letras porque me dei ao trabalho de contá-las. Não é uma possessão demoníaca que se grite inflamadamente do púlpito, mas que outra coisa, senão a mediocridade, partilha a característica divina da omnipresença?
Uma colher de sais efervescentes facilita digestões mais complicadas. Já o sal da nossa Fé mantemos longe de água. Receamos, na fervência, o dispersar daquilo que a ignorância permite manter coeso. Um copo cheio de conhecimento líquido pode fazer desaparecer, a olho nu, tudo o que cegamente decidimos aceitar. Temos medo da diluição do nosso sal; sabemos que a constância é uma virtude espiritual e preferimo-nos incultos sensaborões. Mas, "se o sal for insípido"...
Desagrada-me a adjectivação do "secular" versus o "não secular", como se fizessem parte de realidades diferentes. Naturezas distintas, concordo, mas a desconformidade entre elas é tão pronunciada que escusadamente se pronunciaria. É outro desporto evangélico que submerge na mediocridade. A satisfação pela mera distinção atinge, infelizmente, o auto-declarado crente zeloso. E para quê? Preocuparmo-nos com a diferenciação do que "edifica" e "não edifica" edifica alguma coisa? Esqueço a irritação que este vício me traz para postar uma verdade: nem tudo o que diz respeito à conversa eclesiástica edifica, assim como muita coisa edificante existe fora desse contexto. A Graça de Cristo basta, mas aos que não gracejam néscia e emproadamente contra tudo o resto.
Nisto da mediocridade parece que falo de um grande black-out: a falha é geral. Contraditoriamente, determinado crente que faz tudo para trancafiar a identidade social mantendo a espiritual, satisfaz-se intelectualmente a dizer mal do governo ou do George W. Bush. Condescende com ladainhas pouco exigentes. Uma preguiça analítica assim forma socialmente este individuo, transpondo-se para o contexto eclesiástico.
A automatização nas igrejas é quase orweliana. Critica-se a vã repetição do Pai Nosso mas reescrevem-se "pais nossos" maquilhados de improvisação. O léxico é reduzido. Parece que pretendemos agradar mais um critério do que a Deus. Onde estão as dúvidas, as fraquezas, as perguntas que fazem doer e os salmos que fazem pensar? Fé não é fezada nem um processo hipnótico. Refuto a ideia onde o Espírito entra em nós para fechar os sentidos, calar o intelecto e aceitar as coisas sem pendências; defendo antes que nos capacita a reflectir. Fé não é regressão e por muito que goste de Hebreus 11:1, Fé não é uma definição.
Estou muito longe de ser negativista e considero a igreja uma bênção, mas temo por mim. Temo pelo que dou e pelo que exijo à congregação que é noiva de Cristo. Temo pela insipiência do meu sal e pela frouxidão da minha luz. Temo que a oração pelo crescimento só se refira a cabeças, a lotação.
Precisamos estar todos conscientes da mediocridade para a podermos desarraigar. Não vamos escondê-la atrás do sistema de som excepcional ou do projector multimédia que nos legitimam a mesmice "criteriosa". O espaço físico da igreja nunca serviu para elevar a substancialidade de tudo o que lá é discutido ou beatificar as normas que são humanamente proferidas. Devemos aceitar as coisas decretadas pelo Espírito e não tudo o que nos dizem os crentes. Afinal, mediocridade nem sequer tem onze letras.
Samuel Úria