sexta-feira, maio 21, 2004

A começar nos pés
Nos meus tempos da Faculdade um jovenzito muito empertigado na sua presunção de rebeldia metia-se comigo a propósito da fé. Questionava-me maliciosamente como conseguia conjugar a audição dos Sex Pistols com a leitura das Escrituras. Lembro-me que, tentando permanecer no domínio dos códigos sociais apropriados, tentei explicar-lhe que só uma profunda ignorância sobre a Bíblia permitiria associá-la a uma colectânea de pensamentos positivos. Ou seja, quem dera ao pobre Johnny Rotten almejar à mesma implacável descrição da humanidade que o Bom Livro comunica. Os punks já exibiam os alfinetes de dama. Em comparação com o Evangelho faltava-lhes precisamente as fraldas.
Não vale a pena chorar sobre a iliteracia do povo. Nem repisar que os portugueses conseguem inaugurar novos estádios de ignorância sobre a religião. Não nos consolam as elites nem os da cultura. Parece uma espécie de maldição divina. Que teremos nós feito no passado para que Deus nos castigasse com semelhante inépcia? Pergunta para ser respondida na eternidade, creio.
Lutero meditando sobre a oração do Pai Nosso escreve: "quem pensaria que esta oração havia de respeitar e pôr em causa tanta gente?". Por isso não faz sentido o crente sentir-se orgulhoso - ele mais que ninguém está desprotegido. Nu perante Deus, lembrava Kierkegaard. A fé não é mérito, é por vezes uma incómoda sensação de auditoria, para usar termos feios mas competentes.
Não interessa afirmar as virtudes da nossa crença pela sua dificuldade. Esta pode ser uma tendência bem natural ao conservadorimo teológico. Não há contentamento ao entender os contornos da nossa condenação. Ninguém deve pregar o inferno com alegria. Permito-me um atalho. Se há perversidade na qual os evangélicos são culturalmente instruídos é uma espécie de júbilo recalcado no anúncio do tormento eterno. Não faz sentido e é tudo menos cristão.
Vale a pena lembrar os Salmos. "Lâmpada para os meus pés, luz para o meu caminho". As Escrituras começam ao nível rasteiro do tapete para terminar na ardente convicção filosófica. Nessa distância cabem as dores do mundo, o alívio dos oprimidos e as nódoas na toalha de mesa do casamento. Não conheço livro igual.
Tiago de Oliveira Cavaco