sexta-feira, maio 14, 2004

O encontro com o infernal saxofonista
Quis a Providência que eu crescesse a ouvir demasiado rock'n'roll. Saiu um rapazinho com vagas pretensões intelectuais mas com um indomável e semi-pecaminoso apetite para ser estrela musical. Parece que nem a adolescência, nem a paternidade foram tutoria eficaz para refrear o impulso carnal. E quando se encontram mais dois ou três indivíduos igualmente pouco espirituais o resultado é ter uma banda chamada Os Ninivitas.
Na mistura de cântico sacro com espírito profano o resultado é uma coisa pouco conforme os padrões tradicionais daquilo a que se convencionou chamar música evangélica. E como nem sempre escolhemos bem as companhias, lá acabaram um dia destes Os Ninivitas a tocar num evento para jovens baptistas.
Quis a Providência que eu tivesse crescido num lar em que o pecado da simpatia nunca foi devidamente combatido. Resulta que no fim da actuação daquela jornada fosse cumprimentar afavelmente um saxofonista brasileiro que tocava com precisão e profissionalismo. Posteriormente soube que aquela alma caridosa era um músico de carreira e que estava agora a cruzar a Europa para ganhar almas para Cristo. O ouvir de tão sublime missão deveria ter sido o suficiente para mim para pôr um termo àquela conversa e evitar semelhante companhia. Mas sucumbi. Aquele homem do sopro aproveitou um embalo para partilhar a sua perspectiva estética sobre a minha banda. "Interessante é o termo apropriado", disse. E com um sorriso naquela beata face afirmou que se havia divertido muito durante a nossa actuação.
Quando um músico evangélico brasileiro diz que considera algo "interessante" ele quer na verdade dizer que lhe falta substrato espiritual, devoção na forma, rezas antes de entrar em palco e uma mão a apontar para o céu quando se ouve um aplauso. Sei-o porque já gramei muitos músicos evangélicos brasileiros e porque ser um baptista português significa descobrir que alguém assinou por nós um pacto macabro de que até ao caixão vamos ter de levar com muitas instruções não-encomendadas dos nossos irmãos trans-atlânticos. Terá sido uma espécie de aposta entre Deus e o diabo? Tipo Job? "De certeza que os crentes portugueses não aguentarão firmes na fé se tiverem de aturar missionários brasileiros a vida inteira ..." arriscou Lucifer. O Senhor parece ter aceite o desafio.
Recebemos mal os crentes da ex-Vera Cruz nas nossas igrejas. Oferecemos-lhe o espaço inapropriado. Demasiado grande e de mão beijada. Fomos educados nesta colonização eclesiástica, bem sei. Muito do que somos devemos ao esforço de países como o Brasil e Estados Unidos. Mas já é altura de arranjar um emprego e sair de casa dos pais.
Temos litugias importadas, maneirismos contrabandeados, pregadores estrangeirados e orações com sotaque. Nesta ausência de auto-estima basta o encadeamento oleado de três frases movidas a jargão religioso para darmos a camisa e o púlpito ao visitante tropical. Não lhes fazemos bem a eles nem a nós.
Quis a Providência que naquele encontro com o saxofonista eu não usasse da sinceridade devida. Afinal eu creio na pedagogia das conveniências sociais. A actuação tecnicamente irrepreensível daquele instrumentista lembrava os filmes eróticos que se fazem sempre acompanhar de interlúdios de saxofone para as cenas escaldantes. Eu deveria ter partilhado essa palavra com aquele meu irmão.
Tiago de Oliveira Cavaco