sexta-feira, maio 28, 2004

Com a Justiça concordo
Imaginemos a seguinte situação.
O Estado português assina com uma organização representativa das pessoas de pele ?branca? um acordo conferindo a esse grupo de cidadãos tratamento diferenciado relativamente aos cidadãos com outras "cores" de pele.
Os governantes responsáveis pelo documento, quando questionados sobre a equidade e eventuais aspectos discriminatórios do acordo, argumentam que não senhor, não há descriminação nenhuma, que se mantêm o espírito da Constituição, não se promovendo tratamentos diferenciados. Que apenas foi tomada em conta a profunda ligação histórica entre as pessoas "brancas" e a nação portuguesa. Ligação, aliás, que estava já presente na própria fundação do país, e que depois acompanhou, nestes quase nove séculos, todos os grandes momentos da história pátria. Ora, essa relação tão rica justifica um acordo especial entre os "brancos" e o Estado, no sentido de salvaguardar interesses legítimos de ambas as partes e permitir o normal desempenho das responsabilidades sociais. O que, convém voltar a referir, não significa qualquer tipo de descriminação. O acordo aplica-se aos cidadãos de pele "branca" mas, para todos os outros, vigora a lei geral do país.
Acrescente-se a esta argumentação o facto de o documento ter sido negociado no mais completo segredo, conhecendo-se apenas, no momento da assinatura, resumos pontuais divulgados pela organização "branca".
Não é difícil imaginar o repúdio generalizado que tal acordo suscitaria. Desde os partidos políticos até às organizações cívicas, humanitárias e religiosas, todos (ou quase) fariam ouvir a sua voz pedindo a anulação do documento, invocando discriminação com base na cor da pele.
Pois bem, na semana passada foi assinada, com argumentação e métodos similares, a Concordata entre o Estado português e a Igreja Católica Romana.
Pessoalmente, interessa-me pouco se a nova Concordata contém mais ou menos privilégios que a anterior, se repara ou agudiza injustiças, se foi remodelada por vontade das partes ou forçada pela legislação europeia. O que eu quero mesmo é que não haja Concordata. Nenhuma. Nem com católicos, nem com evangélicos, nem com protestantes, nem com muçulmanos. Exactamente da mesma forma que também rejeito leis especiais para "brancos", "pretos", ou "amarelos". Acredito que o princípio da separação entre o Estado e as igrejas tem fundamento bíblico. E que por isso, mais do que uma ideia generosa ou politicamente correcta, esta separação é um instrumento de justiça.
Pedro Leal