sexta-feira, maio 14, 2004

Feio!
Esaú é dos personagens mais feios que a Bíblia retrata. Tanta estupidez e tanto pêlo juntos não nos criam uma imagem agradável.
Em laivos de insegurança espiritual (toda ela palerma) na minha meninice, entretinha-me não poucas vezes a tentar conjugar aquilo que a Ciência desmentira na religião. A meio das explicações disparatadas havia uma que não confesso com orgulho, pois para mim Esaú era, não o elo perdido entre humanos e macacos, mas ele próprio o ascendente de todas as figuras simiescas, peludas e estúpidas, que observava no livro de História do 7º ano. Fazia todo o sentido já que o tal não deixava de ser habitante primitivo de um Mundo jovem.
Paremos com isto. Ridicularizar-me com estas memórias não leva a lado algum (a não ser às contorções e ao apertar de estômago pela vergonha de mim mesmo) por isso volto ao ridicularizar de Esaú, um dos personagens mais feios que a Bíblia retrata. Com tanto pelo não podia ser bonito; com tão pouco tino não podia ter grande postura, era irremediavelmente feio. Até a acentuada afeição pela caça nos reporta a uma imagem de rudeza, aspereza, fragosidade.
É sabido, Esaú deixou-se embair pelo irmão Jacob e vendeu a primogenitura por um prato de lentilhas. A "primogenitura" não deixava de ser, naquele tempo, um conceito abstracto. Para todos os efeitos as nossas posses hoje também não passam de números informáticos abstractos que no Multibanco materializamos em dinheiro. A maquia da primogenitura na época de Esaú era inestimável; se houvesse uma lista da "Forbes" dessa altura seria para retratar os primogénitos descendentes de Abraão. Quanto às lentilhas, penso que teriam o mesmo valor de agora e não me vou pôr a brincar com inflações. Feio e muito burro, este Esaú.
É sabido, Jacob voltou a surripiar a Esaú mais um conceito abstracto de valor incalculável. Noutro episódio gastronómico, o matreiro Jacob vestiu-se com peles de animais para se fazer passar pelo piloso irmão (que feio deveria ser) aos olhos muito desgastados de Isaac, pai dos complicados gémeos. Com esta mascarada o mais novo retirou a Bênção que o pai prometera ao grotesco mais velho.
É sabido, o barbudo caçador jurou morte ao irmão. O segundo logro tinha sido demasiado. Sobre Jacob cairia a vingança do imbecil indecoroso. Não fosse a mãe de ambos, afecta ao mais novo, ter ouvido a inflamada jura e alertado o seu dilecto, talvez a morte tivesse mesmo assombrado aquela casa nesse dia.
É sabida muita coisa entretanto, mas de Jacob. A sua fuga , a sua inevitável regeneração e as peripécias noutro lado, bem longe. Quando se vê obrigado a retornar à terra dos pais o medo consome-o. Teme a vingança fraterna. Apressa-se a enviar presentes ao feio do Esaú para escapar a um sangrento destino que se afigurava incontornável.
O capítulo 33 de Génesis é, para mim, uma das mais comoventes passagens de toda a Bíblia. Quase me apetece transcrevê-lo para embelezar a irremediável fealdade do meu texto. Não o farei e passo a uma curta descrição: Jacob vê aproximar-se Esaú que traz consigo 400 homens. Teme a chacina e faz recuar os seus filhos e mulher na comitiva que com ele viaja; espera que sejam poupados. Ele próprio se adianta e, prostrado no chão, curva-se 7 vezes até que Esaú chega. O "feio estúpido" corre e lança-se implacavelmente ao pescoço do irmão para... o abraçar. E beijar. E chorar. Choraram ambos.
No tocante diálogo que se segue, Jacob olha para o gémeo e esta pequena expressão que lhe diz não evito transcrever: "...porquanto tenho visto o teu rosto como se tivesse visto o rosto de Deus". Esaú é dos personagens mais bonitos que a Bíblia retrata.
Samuel Úria