segunda-feira, maio 10, 2004

Ler nas espinhas
O almoço foi peixe. Qual feiticeiro de tribo africana, li nos restos do prato, por entre espinhas e azeite, a minha triste sina.
Não foi a primeira vez que encarei, infectado de alguma vergonha, a falta de decoro na louça entregada para lavar. Dentro da cozinha onde almoço com os meus colegas apresso-me várias vezes a despejar o prato no lixo antes que o opróbrio me tome. Desconfio nunca vir a ter qualquer hipótese de corrigir o desmazelo nas refeições. Por muito que me concentre no acto de comer, cortar com faca, picar com garfo, mastigar, sei lá que mais, sobre os meus pratos ficam sempre vestígios, muito arroz espalhado, migalhas de qualquer coisa, restos de peixe nas espinhas, coxas de frango mal rapadas. No sobejar feio do prato em que almocei li a minha triste sina: hoje iria escrever sobre isto nos Animais Evangélicos.
Às vezes refugio-me na etiqueta, confortando-me com a ideia de um prato limpo ser pífio sinal de sofreguidão. A estupidez humana não faz por menos: em vez de disfarçar os meus defeitos com pequenas desculpas despistantes, tenho logo que chamar atenção para eles declarando-os como virtudes. Faz-me lembrar quando, era eu criança, a minha mãe comprou um chamado "tapa-buracos" para disfarçar calças que rompi. Tenho presente esse remendo com o símbolo da Ferrari que, enquanto ostentava orgulhosamente nos joelhos, revelava gritantemente que andava de calças rotas. A ironia recuperada é por recordar-me do buraco no joelho, tão minúsculo que ninguém notaria, não fosse a absurda qualidade com que mascarei o defeito.
É impossível dar-se o primeiro passo para corrigir uma imperfeição se esta não for assumida. Gastamos muito latim a beatificar os nossos defeitos e nenhum a confessá-los. O pior é que nos enlodamos na oratória e já não conseguimos escapar à palmatória.
Devia evitar falar no plural. Se quero experimentar um exercício de humildade não devo generalizar no apontar das falhas. Eu é que deixo o prato sujo. Eu é que introduzo a conversa com um "pecado menor" nas refeições, para suavizar a confissão do mesmo desleixo noutras acções.
Sou desmazelado e, a braços com esta confissão, não acho muito correcto terminar a frase usando ponto final? O fardo acumula-se quando já há pessoas a contar com o meu laxismo, a reconhecerem-no como parte estética integrante da minha essência. Por tanto promover a incúria já tenho dificuldade em diferençar quando é que é uma postura propositada ou o tal defeito mascarado. Postura propositada? Bah, boa tentativa!
Não sei de nenhum evangélico que desconheça Josué 1:09. "Esforça-te (...) porque o teu Deus é contigo" tem leitura óbvia e teor suficiente para me ensinar uma lição. Esforçar-me-ei porque conto com a ajuda de Deus. Vou agora tentar aliviar o meu sufoco com a difamada generalização: quantos de nós é que já se atreveram a mudar a ordem ao versículo e a entendê-lo como "O teu Deus é contigo, por isso vê lá se te esforças!"? Poucos. Vamos lá limpar esse prato.
Samuel Úria