sexta-feira, junho 25, 2004

Do editor
Não podia ser mais apropriado: um artigo único no número 25 d'Os Animais chamado "A Pausa". É isso mesmo. Paramos em Julho e Agosto. Estaremos de volta depois. Ate lá.
TOC


"The Devil Made me Do it ou a concupiscência da carne".

A Pausa
Tenho saudades do Daniel Day-Lewis. Quem? Dirão alguns mais distraídos. Daniel Day-Lewis, de "o meu pé esquerdo", "a insustentável leveza do ser" - que me fez apaixonar pela Juliette Binoche e por Praga, cidade das misteriosas pontes e das orquestras na rua - "o boxer", e "o último dos moicanos". Neste, há uma cena luminosa logo a abrir. Daniel Day-lewis corre por entre as árvores da floresta com mais dois companheiros índios, na perseguição dum alce. A adrenalina corre com a emoção da caçada, a música cresce de intensidade e a velocidade acelerada pelos efeitos especiais é contagiante. DDLewis pára. Faz pontaria. Dispara. A velocidade cai. O filme passa à câmara lenta. A música entra em travagem abrupta. O alce é abatido. Os três índios chegam perto do animal ferido de morte e prestam-lhe uma última homenagem. "Respeitamos muito a sua coragem, velocidade e força" diz o mais velho de joelhos, respeitosamente. Nenhum deles ri ou mostra sinais exteriores de vitória. Pelo contrário, até há uma lágrima furtiva que rola pela face dum dos índios.
Vejo aqui uma imagem perfeita da nossa vida espiritual. Como corremos! Como caçamos! Como atiramos a matar - geralmente outros seres humanos! E, como nos felicitamos pelas vitórias sobre os outros. E se a "vítima" for um irmão em Cristo, ainda melhor. Pagamos cervejas a toda a gente! E, ninguém me diga que não é assim porque a negação será hipocrisia grave. Mas, sobre a matança em que alegremente nos envolvemos na Igreja, podemos falar depois. É tão habitual que já não cativa leitores. (a audiência nesta coisa dos blogues é essencial!) Deixo apenas uma nota de pausa. (kit-kat, em linguagem pagã; selah, em linguagem bíblica) Uma pausa visceral. Essencial. Uma desaceleração feita num repente instantâneo. Sem aviso e sem carta registada. Uma pausa para me aquietar das corridas desenfreadas que a minha existência exige. Uma pausa para deixar fluir a consciência de que uma vida caiu na arena. Uma pausa para aceitar que sou frágil e efémero. Uma pausa para reconhecer que a minha identidade inchada não se sustenta à base dos meus esforços. Uma pausa para ver que pertenço ao coração de Deus, e que será aí, sempre aí, que terei um lugar de refúgio. Uma pausa para engravidar a restauração de forças. Uma pausa para renovar a minha mente visionária, energia profética e determinação vocacional. Uma pausa para elogiar e acarinhar, a coragem, a velocidade e a força espiritual, do meu irmão em Cristo. Sem essa pausa ... não resistirei. Irei soçobrar. Naufragar. E me abominar.
Samuel Nunes

sexta-feira, junho 18, 2004

Do editor
O número 24 d'Os Animais Evangélicos vem com um vinco político. Ressalva-se que não houve qualquer contacto prévio entre mim e o Pedro Leal. Quis Deus.
TOC


"A procissão dos infiéis".

Orgulho e preconceito
O meu orgulho evangélico nunca residirá na sofisticação alternativa que o "credo desviante" pode suscitar. Aqui no interior não há disso. Nunca me lembro de, na pequena Tondela, a minha religião ter causado curiosidade cultural a qualquer amigo. Jamais me confessei protestante para impressionar miúdas. Isso não resulta, em Tondela não resulta.
A minha vergonha evangélica reside - isto sim defino mais facilmente - em tudo o que se confunde com cristianismo e não passa de diletantismo denominacional. Sufoca-me mas não me leva a desistir. Por muito que ataque a mediocridade dos cultos aponto de dentro, não falto a um. Se escrevo a criticar a insipidez das palavras fico-me também pela inoperante escrita e vejo homens subir ao púlpito para que eu não tenha razão. Quando reparo nas agruras da vida comunitária conto as bênçãos. Provavelmente isto permanecerá intrincado, mas a minha vergonha evangélica poderá estar na raiz de grande parte do meu orgulho evangélico.
Não me considero um hipócrita sempre desunhado na crítica ao sistema que subscreve. Sou um tipo da pequena Tondela, demasiado provinciano para ser insidioso, demasiado bem-intencionado para ser fútil. Restrinjo à minha pessoa toda a ironia que acabo de traçar. Talvez me tenha habituado em demasia a escrever censuras aos evangélicos mas a estratégia inconsciente é "menos mal" elaborada: antecipo-me às críticas exteriores quando eu próprio, assumindo-me evangélico, nos repreendo, evangélicos assumidos, orgulhosos ou envergonhados.
Com isto da Internet a "curiosidade cultural" ou as "miúdas impressionadas" podem estar na janela da frente. A pequena cidade beirã perde fronteiras que não faço ideia até onde se alargam. Oportunidade soberana para desfilar o meu "orgulho evangélico", especialmente este incaracterístico que desprendidamente ataca os seus. A aceitação intelectual pode estar mesmo ali atrás de meia dúzia de conhecimentos sobre profetas menores. Ei, olhem todos para mim, o do "credo desviante"...
...Meu Deus, que porcaria de orgulho é que eu poderia ter nisto?
A carapuça não me serve e, sei-o sem margem para dúvidas, está igualmente uns largos números abaixo da cabeça dos meus amigos que partilham este espaço dos Animais Evangélicos. No dia em que decidir aproveitar-me da religião para me auto-promover que serei mais do que um diletante denominacional? Terei vergonha.
Samuel Úria

The South Will Rise Again?
A Convenção Baptista do Sul saiu da Aliança Baptista Mundial. Não me interessa fazer uma análise séria e imparcial do caso. Outras paróquias fá-lo-ão muito melhor. Um dos argumentos usados pelos sulistas é de que a ABM tinha vindo a assumir uma postura política "à esquerda". Anti-americana e teologicamente liberal.
Sabemos o que está em causa. Os baptistas do sul têm-se mostrado publicamente ao lado de Bush. Ora, o presidente americano é uma meretriz babilónica até aos olhos dos geralmente insípidos baptistas europeus. Basta ver a forma ingénua como Carter tem sido promovido como "exemplo" para a actual administração. O velho Jimmy foi azarado com o Irão mas aprendeu a construir casas para os pobrezinhos e lá lhe deram um Nobel. Da mesma maneira como o parodiante Moore recebeu a Palma. O Velho Continente tem sido próspero em recompensar quem junte mais gasolina à fogueira "anti-imperialista" (como eles gostam de dizer).
Provavelmente a Convenção Baptista do Sul até faz bem em sair da ABM. Escusa-se de se pegar nas questões ditas teológicas. Não será por aí. Não é necessário apimentar a coisa com acusação de simpatia pelos efeminados. Como diz Denton Lotz, o secretário-geral da ABM, somos todos "conservative evangelicals". E é verdade.
Raramente a política tem sido motivo de divisão entre evangélicos. Contudo, parece que os tempos nos empurram para a assunção de diferenças. A concórdia entre gente tão diversa é um valor relativo. Afinal muitas vezes estão "reunidas" formas antagónicas de olhar o mundo. Quem não sabe o que é juntar um pentecostal com um baptista?
No quintal que são os baptistas portugueses muito me apercebi que era escândalo para os irmãos apoiar a intervenção americana no Iraque. Trágica ironia. Tudo o que importamos da América e me revolve as entranhas foi esquecido neste momento de crucial ódio contra-atlântico. Muitos dos pastores que tão alarvemente ridicularizam agora os americanos são aqueles que, mal aterram no aeroporto, não vêem a hora de transformar as suas igrejas de subúrbio no último grito da moda evangélica em terras ianques. E um pouco de vergonha?
Debaixo da designação "evangélicos" cabem carismáticos em chamas, moderados que lêem o Público, cristianofascistas, intelectuais de esquerda, exorcistas sem paramentos, papa-versículos, obcecados pelo inferno e superintendentes da Escola Dominical. Não era bom se a banda parasse de tocar essa cantiguinha brasileira pirosa e começássemos a assumir as nossas divergências? Não temos de acabar as nossas reuniões sempre com um amén.
Tiago de Oliveira Cavaco

[Sem título]
A ideia, sabe-se lá com que fim, é clara. Fazer confundir o Presidente norte-americano George W. Bush, e as suas acções políticas e militares, com a totalidade dos evangélicos. Os autores dos textos são católicos com aparentes "protestantivites" mal curadas, como Frei Bento Domingues e Sarsfield Cabral, e agnósticos empedernidos, como Mário Soares. Os artigos vão saindo com regularidade nos jornais desde há uns meses para cá.
Obviamente que esta tentativa de generalização é um disparate. Tanto o denominado "sionismo cristão" como a intervenção militar no Iraque, as duas acusações maiores, têm entre os evangélicos apoiantes e detractores. Aliás, a reacção à guerra que depôs Saddam está longe de se poder fundamentar num único ponto de vista. O cristão, pela sua nova natureza, ama e trabalha para a paz. Mas isto não significa que seja necessariamente pacifista. Pacifismo implica a ausência do uso da violência em qualquer circunstância. E se há cristãos que vivem coerentemente, e muitas vezes com um preço elevado, este ideal, como os Menonitas, também é verdade que para a maioria a conquista da paz e da justiça justifica, em situações extremas, o recurso às armas. A Segunda Guerra Mundial constitui aqui um caso paradigmático. Nesta perspectiva, a invasão do Iraque pode ser valorizada de forma diferente por dois evangélicos sem que haja entre eles um conflito doutrinário. Os meios para alcançar o objectivo podem variar. O objectivo em si, neste caso a paz, esse sim, importa ser comum.
Mas, mais do que o conteúdo erróneo dos artigos, que num meio tão ignorante da diversidade religiosa como o nosso, nem choca muito, incomoda-me a reacção que um número crescente de evangélicos vem tendo em relação à referida "campanha".
Concerteza que é muito mais agradável sermos associados a um Prémio Nobel da Paz, como Jimmy Carter ou Martin Luther King, do que a um impopularíssimo e insultado George Bush. No entanto, alguns evangélicos parecem ter esquecido que não é o reconhecimento público ou o barómetro da opinião pública que definem um cristão. Bush pode ser uma companhia incómoda para uma minoria religiosa em Portugal. Mas não é por isso que podemos por em causa a sua fé ou renegá-lo como irmão em Cristo. As suas convicções religiosas são, tanto quanto se conhece, claramente evangélicas. Terá opções doutrinárias que me causam perplexidade. Mas o mesmo acontece entre um baptista e um carismático, e isso não constitui motivo para se renegarem mutuamente.
Tal como as opções politicas do Presidente norte-americano devem ser avaliadas à luz do Evangelho, também é sob essa mesma luz que se reconhecem os que partilham connosco a fé em Jesus Cristo. A bitola da popularidade e a escala benefício/prejuízo não ficam nada bem nas mãos evangélicos.
Pedro Leal

O Naufrágio
Quando este texto estiver nos "Animais" estarei a banhos nas praias do Mediterrâneo. É uma reincidência! Fico sempre fascinado com este Mar imenso, dum azul fundo e límpido. Foi neste mar que há 2700 anos Jonas foi cuspido dum peixe. Foi neste mesmo mar que há 2000 anos Paulo foi cuspido dum barco. Os dois naufragaram neste mar. As semelhanças entre os dois passam da coincidência e viram cristocidência. Jonas enamorado duma planta (foi o primeiro profeta ecológico), Paulo romanceado com pessoas: "nem um cabelo se perderá!" Jonas alienado a dormir no meio da borrasca, Paulo empenhado e envolvido na salvação do barco e nos relacionamentos pessoais a bordo. Jonas tem um encontro imediato com uma planta, Paulo com uma serpente. Jonas dando importância à matéria - "skarah" - comprando todo o barco, Paulo interessado no espiritual. Jonas vendo o natural - bílis no estômago do peixe, Paulo vislumbrando o sobrenatural: "um anjo". Jonas fugindo da face de Deus, Paulo dialogando e orando com Deus. E, fico-me nas ambiguidades da pergunta: serei Paulo, ou serei Jonas? Nas entrelinhas está a resposta. Há um desejo enorme em mim de ser Paulo, e há uma pré-disposição brutal de ser Jonas. E, neste ser e não ser, fico olhando o Mar, numa dança e contradança de nunca esquecer.
Samuel Nunes

sexta-feira, junho 11, 2004

Do editor
Quatro textos curtos para o número 23 d'Os Animais Evangélicos. Aconselha-se a última Terra da Alegria. Com muito bons artigos.
TOC


"Os Animais".

Nada a acrescentar
Gostaria de ouvir o Salmo 119 no original, sorver a musicalidade que lhe imagino. É um salmo enorme, em tamanho o maior, mas ainda assim lhe sorveria as palavras com mais gosto do que nas minhas entregas ao psicadelismo repetitivo e demorado dos Velvet Underground. Gosto dos Velvet, mas a Bíblia é a Bíblia e o Salmo 119 é um salmo enorme que fala da Bíblia.
Ocasionalmente abri nesse capítulo certo Domigo há muitos anos. Apreciava números ímpares e pedi à minha avó que lesse o versículo nove. Gabou-me a escolha e disse-o de cor. A explicação foi brinde. Talvez tenha aprendido o significado de "mancebo" nesse dia, mas da lição nada recordo. O mais certo era ter estado a ouvir a minha avó como o fazia com qualquer pessoa durante a infância: em completa distracção. É pena; perdi provavelmente o único estudo sobre esse capítulo que valia a pena.
Nos cultos hoje em dia, a minha concentração continua a receber parcimoniosamente as análises ao Salmo 119. Não é por gostar pouco ou achá-lo pobre, penso o exacto contrário. Detenho antes a ideia de que é extenso porque nada se pode acrescentar. É repetitivo em palavras e ideias para ser claro.
Quem gosta da Bíblia já a leu por completo. Quem gosta da Bíblia mas é preguiçoso já leu, pelo menos, o Salmo 119. Quem gosta do Salmo 119 não pode ser preguiçoso com a Bíblia.
Lá porque me apetece ouvir o entoar deste capítulo na língua original e pouco me apetece estudá-lo não quer dizer que ando à procura de experiências ascéticas em mantras ininteligíveis indeferindo uma racional devoção. Quero é não dizer mais nada sobre o salmo, quero que seja conclusivo. Quero, sobre o maior dos salmos, fazer o meu texto mais pequeno.
Samuel Úria

Votar
Sem qualquer pretensão a Presidente da República, não quero deixar passar esta data pré-eleitoral sem uma reflexão acerca da importância do voto. Escrevo, obviamente, como cristão. Interessam-me, por isso, mais do que conceitos algo vagos, como cidadania ou participação cívica, os argumentos fundamentados na expressão bíblica. Sendo assim, e numa análise não exaustiva, encontro no Novo Testamento pelo menos duas boas razões para ir colocar o meu voto na urna no próximo Domingo.
Desde logo, a possibilidade de contribuir para uma sociedade melhor. Mesmo parecendo uma voz ínfima no meio da multidão, o voto constitui sempre uma forma de influência. Às vezes dilui-se entre milhões, outras vezes quase que o conseguimos ver na diferença decisiva (o referendo sobre o aborto é, neste caso, um bom exemplo). Mas, quaisquer que sejam as circunstâncias, permanece a responsabilidade de participar. Um dos privilégios de viver em democracia é, precisamente, a possibilidade de cada cidadão dar o seu contributo para decisões que dizem respeito ao colectivo. Não me parece que o cristão, no seu papel de "sal e luz", esteja em condições de abdicar de tal oportunidade. Mesmo que a desilusão com os políticos seja grande, há sempre uma escolha a fazer. Qual a proposta que chega mais perto de uma sociedade mais justa e fraterna?
Outra razão para votar no próximo Domingo é o princípio da obediência às autoridades. Pode até parecer estranho e impopular invocar tal pretexto quando a reputação dos que nos governam, independentemente da "cor" partidária, anda pelas "ruas da amargura". Mas, de facto, esta é uma doutrina bem clara na Bíblia (Tito 3:1; I Timóteo 2:2; Romanos 13:1). Note-se que não se descrimina aí o tipo de regime político ou a qualidade dos governantes. Não há uma lista de "ses". Declara-se apenas a submissão ao poder instituído, como forma de cooperação para a paz e boa ordem social. Por isso, devem merecer toda a consideração o apelo à participação eleitoral feito pelo mais alto magistrado da nação, e a Lei máxima do país, que define o voto como um dever.
Pedro Leal

O Mistério
O Sábio Salomão ficava espantado com o mistério do vôo da ave no céu e com os misteriosos caminhos dum homem com uma jovem. O último já não me surpreende, enquanto o primeiro ainda tem um fascínio para mim.
O que verdadeiramente me espanta é o mistério da Graça Quotidiana. Aquela que me aguça o meditar. Aquela que me faz aceitar os limites da minha dúbia humanidade. Aquela que me deslumbra com a amizade, os sonhos, a mesa, o romance. Aquela que me faz acreditar na Igreja. Não a Igreja instituição. Deixo essa para os "papa-cargos" da nossa praça. Mas aquela Graça revelada numa Igreja feita de tecido humano, feita gente. Onde se cultiva o espaço para errar, para sorrir, para ser. Os acontecimentos extraordinários e as frases bombásticas já não me seduzem. Abomino-as com uma determinação serena. Tranquilamente, abro os braço à rotina. Aquela rotina antecipada da Graça Quotidiana de Deus. Haverá aqui um mistério!?
Samuel Nunes

O sermão do Tio Teo
Foi o meu tio Teo, e também meu actual pastor, que me ensinou que Pedro foi um mau exemplo em muitos gestos precipitados mas o melhor a perceber quem Jesus era. Não esqueço esse sermão em que o entendi. Estava sentado no topo das minhas ultra-convicções absolutas de adolescente evangélico quando a passagem bíblica me recordou do encontro entre Jesus e o discípulo na praia, após a ressurreição.
O amor-próprio de Pedro estaria ao nível da alcatifa. Ser precipitado é uma coisa, ser traidor é outra. E é precisamente a este pobre diabo que o Mestre coloca a pergunta teimosa: "amas-me?".
Foi um pouco da minha estrada para Emaús. Ao ouvir aquela palavra abriram-se-me os olhos para algo mais do que uma crença sólida, orgulho de doutrinadores. Arrisco. Talvez na baixeza de negar o Salvador por três vezes tenha sido Pedro o que dele mais se aproximou. "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja".
Por personalidade e educação sou levado a nutrir pouca reverência por gente como Pedro. Aflige-me a intempestividade, a falta de recato e ausência de bom-senso. Mas as Escrituras permanecem. O senhor dos dedos rápidos para pegar na espada foi quem disse: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo".
Tiago de Oliveira Cavaco


sexta-feira, junho 04, 2004

Do editor
O número 22 d'Os Animais Evangélicos regista o regresso do Tiago Branco. Mais
- as cantigas pegajosas de namorados excessivos
- os braços vigorosos dos trapezistas
- a receita contra a mediocridade
- e um jardim por jardinar.
Para a semana há mais.
TOC


"O jardim a tua vida".

Da chatice
Leio um artigo de um evangélico insuflado. A coisa é chatíssima. Reconheçamos: os evangélicos são educados para escrever coisas que nos aborrecem até à morte. Receita: uma tese que edifique, um queixume disfarçado de exortação ética, uma tenrinha esperança de unanimidade, uma presunção de inspiração divina instantânea, um esforço inútil de aparência humilde, uma procura ofegante de objectividade. Clamemos por livramento.
O Samuel Úria já defendeu a teoria há umas semanas atrás. A mediocridade é uma norma que se confunde com o batimento cardíaco das nossas comunidades. Não se defende aqui uma liturgia circense, equívoco que tantos seguem convictos de que o Espírito é um mecenas excêntrico. Não se apoia aqui comunidades "alternativas" ? excrescências como grupos de artistas, intelectuais e endinheirados que não encaixam no conceito tradicional de igreja, como eles gostam de dizer. Não se patrocina aqui manifestos de cidades abaladas pelo magnetismo do centro evangélico local por obra e graça de ideias tão suspeitas como a de "reavivamento". Sou um lacaio inexpressivo da minha igreja na sua acepção mais burocrática. Creio abusivamente que Jesus nos condenou às agruras da membrazia. Deixo os arrebatamentos e as conversões em massa para os fanáticos da bola.
Contudo, parece-me simples afirmar que para nos livrarmos desta praga de frigidez cultural que nos aflige há que entender a igreja enquanto soma de cabeças. Individuais. Únicas. Invioláveis. Prescindamos do exército de ávidos evangelizadores sem escrúpulos para apostar em pessoas. Tão somente.
Um conselho prático, como a turba sempre aprecia: na Escola Dominical ensinar as criancinhas a repetir todos os domingos, a seguir à passagem bíblica da semana, a seguinte frase de Kierkegaard: "a multidão é falsidade". Semeemos. Com a bênção do Senhor colheremos no espaço de 20 anos.
Tiago de Oliveira Cavaco

O trapézio
Henri Nouwen relata um encontro que teve com os trapezistas dum circo no seu livro "Sabattical Journeys". Um relato memorável. Conta Henri Nouwen que os trapezistas dão-nos um grande exemplo de confiança. Os "voadores" têm de confiar inteiramente no seus "apanhadores". Os "voadores" fazem os seus saltos duplos e triplos, mas depois têm de ser agarrados pelos "apanhadores". Os saltos dos "voadores" são espectaculares porque os "apanhadores" esperam por eles no lugar certo, e no segundo certo. E há mais. Os "voadores" nunca devem procurar os "apanhadores". Estes estão lá no momento preciso para arrancarem os "voadores" do espaço.
Na vida há muita gente com medo de voar. Medo de largar o trapézio. Medo profundo de darem "saltos espectaculares" na vida. Não amam porque têm medo da rejeição, do abandono, do desencanto. Não lutam porque têm medo do descrédito. Não opinam porque têm medo do ridículo. Não dão porque acham que podem ser explorados, abusados, achincalhados. Não mudam porque receiam o desconhecido, o que não controlam. Pais que não arriscam dar autonomia aos filhos porque têm medo de os perder. Filhos que não comunicam porque têm medo do ralhete paterno. Casais que preferem o "conforto" do divórcio amoroso porque têm medo da restauração de relacionamentos que obriga à transparência emocional.
E o medo paralisa ...
João diz: "o amor escorraça o medo". Antes João afirmara que "nós amamos porque Deus nos amou primeiro". E é aqui que encontro a base para os voos da vida. Aqui está a raiz da minha aventura. Se Deus me ama, então tenho coragem para dar novos passos, para desvirginar florestas, para pisar areias calmas, para desbravar emoções paradas, para rebentar com instituições falidas, para arriscar novos sonhos, para amar de forma extravagante.
Se os pais cressem mais no amor de Deus, certamente seriam menos possessivos com seus filhos. Se os casais acreditassem no amor de Deus, seriam mais genuínos e generosos. Se os jovens acreditassem no amor de Deus, seriam mais aventureiros na vida da Igreja. Se os crentes acreditassem no amor de Deus, seriam mais compreensivos com as falhas alheias. Se eu confiasse inteiramente no amor de Deus, seria melhor pastor.
É isso que nos ensina Cristo. A afirmação foi clara e soou forte: "este é o meu Filho amado, em quem tenho prazer". São estas palavras do Jordão que dão a força de viver a Cristo. Deus o Pai, é o "apanhador". Por isso Cristo sobe ao Calvário, por isso Ele ama os inimigos, por isso Ele cuida das prostitutas e dos marginalizados, por isso Ele confronta as instituições fossilizadas, e por isso Ele denuncia a arrogância dos poderosos.
É urgente sairmos da zona de conforto em que as Igrejas se transformaram. É premente termos a ousadia de soltar as mãos de trapézio e .... voar. Perguntaremos: corremos o risco de nos estatelarmos no chão? Não! Temos um "apanhador" atento e infalível: "eis que estou convosco sempre".
Samuel Nunes

Paixão por Cristo
Sei do que falo. Sei-o como qualquer miúdo que aprende uns acordes de guitarra. Miúdo conhece miúda, miúdo apaixona-se por miúda. Miúdo pega na guitarra e escreve canções de amor. Fui um desses e sei do que falo, tenho a minha quantia de cantigas assim.
"Lamecha, a e s.m. FAM 1.Baboso, mimado. 2. Namorador ridículo."
O dicionário nada guarda de bom para a carapuça que me serviu. Já eu, obviamente, tento inocentar-me: "A César o que é de César, a Deus o que é de Deus", às namoradas o que é das namoradas.
A paixão apresenta-se uma coisa temível tanto que nunca estranhei de todo as analogias poéticas, magníficas ou corriqueiras, com a loucura. As "canções de amor" não são propriamente temíveis, mas no meio de um estado alterado há sempre doses de irrazoabilidade desmedidas. Com isto, e reassumindo o papel de miúdo que escrevia as cantigas, pouco quero exemplificar quanto à perigosidade das músicas lamechas, duvido que o sejam em demasia. A irrazoabilidade é intrínseca ao pseudo-poeta apaixonado, é essencial à relação trovador-musa.
Olho com desconfiança as vociferadas intimidades com Deus. Desde que penso nisso detesto quando o ideário romântico se mescla com o devocional. A filiação no Criador dá-me uma visão incestuosa de certas expressões a Ele endereçadas. Posso estar errado, mas o bardo meloso dentro de mim conhece muito bem a fogosidade e efemeridade das paixonetas onde a transcendência da expressão prevê uma validade extinguível. Conheço a irrazoabilidade.
"Amor" foi primeiramente um conceito divino. Já o humanizei para escrever músicas xaroposas. Com os mesmos acordes, mudando uma palavra ou outra, poderia cantar o que compus num período de louvor. A carne sacrificada aos ídolos, o mel sacrificado à musa, jamais deveriam servir de segunda refeição. Humanizar o amor, proferi-lo, dissecá-lo, não aproxima invariavelmente de Deus. Mais vale entregá-lo em sorrisos, porque é exigido, do que tecer exigências divinas para auto-satisfatoriamente o entregarmos.
Deus preenche o vazio e nós devolvemos para ficar ainda mais atestados, mas, nisto do Louvor devemos lembrar o exemplo de Caim e Abel: não interessa o que queremos dar a Deus, por muito enamorada que seja a intenção, interessa antes o que Ele pede.
Estou apaixonado mas não me conformo com a praxe da paixoneta adolescente. Em vez de melífluas declarações de amor três vezes repetidas pensarei no apascentar das ovelhas. A César o que é de César, a Deus o que é da namorada ou à namorada o que é de Deus? Não?O pedido na Bíblia é para "louvar com inteligência" e, bem o provam as minhas cantigas adolescentes, os apaixonados são todos uns palermas prazenteiros.
Samuel Úria

História para Crianças, ou "O Jardim a Tua Vida"
Era uma vez um jardineiro que um dia decidiu plantar o jardim mais bonito, mais vistoso e mais agradável alguma visto. Vai ser a minha obra prima, pensou, vou procurar as sementes mais preciosas, as plantas mais bonitas, e o frutos mais perfumados e vou juntá-los num jardim de respirar fundo, de encher o coração.
E assim, foi. Partiu e viajou pelo mundo inteiro, por montanhas e vales, pelos lugares mais ermos e desabitados enfrentando perigos e tempestades, em busca das sementes mais preciosas, dos rebentos mais frágeis, e dos perfumes mais raros. Só parou quando conseguiu todas as sementes e rebentos de árvores, plantas e flores que tinha imaginado para o seu jardim. Regressou, voltou ao lugar que havia escolhido, e durante meses a fio, trabalhou para construir aquele que seria o mais belo jardim de todos os tempos. E uma a uma, as mais preciosas sementes, aquelas que dariam as mais belas e frondosas árvores foram plantadas no centro do jardim. Com muito cuidado, a semente da amizade foi colocada, acondicionada, com a melhor terra, e regada. Da mesma maneira, as sementes da verdade e da justiça foram cuidadosamente plantadas, de modo a formar, juntamente com a semente da amizade, um triângulo. No centro deste triângulo, foi plantada a mais preciosa semente do todas, a semente do amor, a jóia e a vida daquele que viria a ser o mais belo jardim de todos os tempos.
Com um cuidado paternal, todos os dias o jardineiro voltava ao seu jardim, para cuidar de todos os pequenos rebentos. Podava, regava e acondicionava cada rebento com toda a dedicação e carinho (sim, porque as pequenas plantas, são como as crianças, precisam de atenção e de carinho) e assim, todas cresciam fortes, bonitas e saudáveis. O jardim começava a mostrar toda a sua beleza.
Porém, um outro jardineiro ficou com muita inveja por ver um jardim tão bonito, e não conseguindo suportar mais a raiva, decidiu no seu coração destruir aquele jardim. Mas quis destruí-lo com um requinte de malvadez, sem deitar fogo ao jardim, sem abater as árvores ou pisar as plantas. Decidiu desfigurar o jardim, corrompendo o que nele havia de mais belo. Assim, lançou-se numa busca pelas sementes das plantas mais terríveis, e dos frutos mais venenosos, e quando os conseguiu, escondeu-se à entrada do jardim, e esperou pelo cair da noite. Quando a lua já ia alta, correu até ao centro do jardim onde cresciam fortes e bonitas as árvores da amizade, da justiça e da verdade, e no centro destas três a árvore do amor. E do seu saco negro retirou uma semente da árvore da cobiça, e plantou-a mesmo ao lado da árvore da amizade. E ao lado da árvore da verdade, plantou a semente da mentira, e ao lado da árvore da justiça, plantou a semente da ganância. Não plantou nada ao lado da árvore do amor - ele sabia que o trabalho estava feito!
Nas noites que se seguiram, continuou a visitar o jardim, regando as suas sementes de destruição e cuidando delas, da mesma maneira que o bom jardineiro cuidava das suas.
Os dias foram passando, e as árvores da amizade, da verdade e da justiça que outrora cresciam fortes e vigorosas, travavam agora uma terrível luta pela sobrevivência. Apenas uma das árvores, que estavam juntas podia sobreviver. Sim, porque a verdade, não vive, quando vive a mentira, e a amizade não sobrevive à cobiça, e a justiça não consegue viver ao lado da ganância. E a árvore do amor aos poucos definhava, porque o amor não sobrevive no meio da cobiça, nem da mentira, nem da ganância.
O fim desta história depende de cada um de nós, pois no nosso coração, tal como o jardim, temos sementes de amizade, justiça, verdade e amor. Mas temos também sementes de mentira, de cobiça e de ganância. O que acontece é que muitas vezes não percebemos que estas sementes não podem viver ao mesmo tempo. E muitas vezes não percebemos que o amor não sobrevive à cobiça, nem à ganância, nem à mentira. Também é fácil esquecermos que as sementes têm de ser regadas, e cuidadas, tal como as crianças, e que se não as regarmos, elas nunca crescem.
Mas quase todos queremos ter um jardim bonito, portanto o final da história depende de cada um de nós. Depende de quais vão ser as sementes que regarmos, exercitamos e fortalecemos, e depende de quais vão ser aquelas que decidimos arrancar.
O jardim, é o nosso, a vida é a nossa, e o coração é o nosso. Por isso fazemos com eles o jardim que quisermos.
Tiago Branco